O globo, n. 31312, 30/04/2019. País, p. 5

 

Bolsonaro quer isentar de punição ruralista que atirar em invasor

Gustavo Schmitt

30/04/2019

 

 

Presidente defende ‘excludente de ilicitude’ para donos de terra e articula liberação da posse de arma nos limites das propriedades

O presidente Jair Bolsonaro pretende encaminhar ao Congresso um projeto de lei que isentará de punição os proprietários de terra que atirarem contra invasores de seus imóveis. A chamada “excludente de ilicitude” está prevista atualmente no código penal apenas em casos de legítima defesa, quando em reação a “injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

A proposta foi apresentada ontem pelo presidente, durante a abertura da Agrishow, maior feira agropecuária da América Latina, em Ribeirão Preto (SP).

O presidente também informou que, no último fim de semana, conversou com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sobre outro projeto de interesse dos produtores rurais, uma de suas bases eleitorais. É o que estende a toda a área da propriedade a liberação do posse de arma para o dono da terra.

Ao GLOBO, Maia confirmou que combinou de pautar a ampliação da posse na extensão da propriedade, mas que não tratou da excludente de ilicitude a proprietários rurais.

A defesa de mais armamento no campo não é exclusiva de Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral de 2018, a tese foi defendida por outros candidatos,comootucanoGeraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo.

Bolsonaro reconheceu que a proposta “vai dar o que falar”, mas ponderou que essa é uma maneira de ajudar a “combater a violência”:

—Ao defender a sua propriedade ou a sua vida, o cidadão de bem poderá entrar no excludente de ilicitude. Ou seja, ele responde, mas não tem punição. É como temos que proceder. Para que o outro lado que desrespeita a lei tema o cidadão de bem.

Já existente no código penal, a excludente de ilicitude voltou a ser tema de debate quando o ministro da Justiça, Sérgio Moro, enviou há dois meses o pacote anticrime ao Congresso. Em casos de crimes cometidos por agentes das forças de segurança em serviço, o texto de Moro prevê que o juiz poderá “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, o que na prática ampliaria a definição desta previsão legal.

Na feira agropecuária, Bolsonaro fez uma defesa da extensão da excludente de ilicitude aos proprietários, mas ainda é preciso que seja apresentado um projeto de lei que defina quais seriam as circunstâncias precisas para a isenção de pena.

Bem recebido pelos produtores rurais, Bolsonaro tirou várias fotografias ao chegar na Agrishow. Ele posou em cima de um trator e foi saudado como “mito”.

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Especialistas discordam da proposta do presidente

Tiago Aguiar

30/04/2019

 

 

Mesmo quem defende medida para policiais e agentes de segurança pondera que proprietários não têm o treinamento devido

Especialistas em direito criminal e violência no campo criticaram as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre um projeto que garanta a chamada “excludente de ilicitude” para produtores rurais em casos de invasão. Mesmo vozes favoráveis a garantias para não punição de policiais em serviço condenam a possibilidade da ampliação de isenção no caso de proprietários rurais.

O criminalista e constitucionalista Adib Abdouni, favorável ao dispositivo para policiais em determinados casos, como contido no projeto de lei anticrime do Ministério da Justiça, é contra a adaptação a fazendeiros:

— A polícia não pode ser punida em operação normal. Ela precisa de uma garantia para defender a população. Já os proprietários rurais não têm o treinamento necessário, se utilizam de armamento mais pesado que policiais e muitas vezes possuem funcionários sem registros que atuam como “capatazes”.

Adib avalia que a medida é temerária e que precisaria alterar o código penal e a Constituição.

— Em casos de invasão de terra rural, se o invasor está armado, já se pode alegar legítima defesa, prevista na lei. Mas em invasões em que não houve risco à vida, o proprietário não pode agir sem autoridade policial — completou o advogado.

A coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Isolete Wichinieski, é contrária à medida.

—Esse projeto é a legalização do crime organizado, que já existe pelos mandantes e as milícias rurais. Enfraquece a possibilidade de pedidos à Justiça, em tema que os responsáveis muito raramente são punidos — afirmou Isolete.

A Comissão é uma entidade que produz levantamentos anuais sobre violência no campo. A pesquisadora conta que a maioria das mortes ocorre em comunidades tradicionais, que estão reivindicando na Justiça demarcações, e em assentamentos que já atingiram o tempo de uso que justifica a posse.

— Boa parte das ocupações já acontecem para alertar sobre o crime de grilagem de terras ou crimes ambientais. E esses conflitos não são resolvidos pela legalização de outro crime.