O globo, n. 31309, 27/04/2019. País, p. 6

 

O recuo do veto

Gustavo Maia

27/04/2019

 

 

Governo admite que proibição a comercial do Banco do Brasil fere a Lei das Estatais

Um dia após O GLOBO revelar a interferência do presidente Jair Bolsonaro na área de marketing do Banco do Brasil (BB), ao ordenar a retirada de um comercial do ar, o Palácio do Planalto recuou e, ontem à noite, reconheceu que a medida desrespeita a Lei das Estatais, que protege a independência de empresas como o BB.

Chefe da Secretaria de Governo, a quem está subordinada a área de comunicação da Presidência, o ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz disse ao GLOBO que o veto ao vídeo do BB está suspenso, assim como também era inválida a determinação do setor para que toda a publicidade estatal fosse submetida à análise prévia do Planalto.

— Não observou estritamente o que diz na legislação, não tem validade —disse Santos Cruz, deixando em aberto a possibilidade de o filme voltar ao ar. — Se vai ou não, é problema do presidente do Banco do Brasil — completou.

Ainda ontem, a TV Globo revelou um e-mail enviado na quarta-feira pelo secretário de Publicidade e Promoção da Secretaria de Comunicação (Secom), Glen Lopes Valente, a empresas estatais determinando que toda peça publicitária deveria ter autorização prévia do Planalto. O e-mail generalizava para toda a administração pública a atitude de Bolsonaro em relação ao vídeo do Banco do Brasil. “Em atendimento à decisão estratégica de maximizar o alinhamento de toda ação de publicidade do poder Executivo federal”, o conteúdo de todas as ações publicitárias, “inclusive de natureza mercadológica” deveria ser submetido para “conformidade prévia” da Secom, dizia o texto. No início da noite de ontem, porém, a Secretaria de Governo divulgou um novo comunicado reconhecendo que a determinação contida no e-mail não havia respeitado a Lei de Estatais. “A Secom, ao emitir o email veiculado, não observou a Lei das Estatais, pois não cabe à Administração Direta intervir no conteúdo da publicidade estritamente mercadológica das empresas estatais”, disse o ministério. O ministro Santos Cruz afirmou ter cobrado informações de Glen Valente, responsável pelo comunicado às estatais. Ele assumiu nesta semana o cargo de secretário de Publicidade e Promoção da Secom. Segundo Santos Cruz, depois de Glen ter ido ao seu gabinete para explicar o e-mail, o governo concluiu que a interferência na publicidade das estatais “não tem validade”. No artigo 90, a Lei das Estatais determina que “as ações e deliberações do órgão ou ente de controle não podem implicar interferência na gestão das empresas públicas e das sociedades de economia mista a ele submetidas nem ingerência no exercício de suas competências ou na definição de políticas públicas”.

Norma contrariada

Além da Lei das Estatais, a interferência em ações de publicidades “mercadológicas” — quando há apenas disputa de mercado, e não posicionamentos institucionais do governo — contraria também a Instrução Normativa 2 da Secom, publicada em 20 de abril de 2018, no governo do ex-presidente Michel Temer. O texto “disciplina a publicidade dos órgãos e entidades do poder Executivo federal e dá orientações complementares” sobre como a própria Secom atuará em relação ao tema.

O artigo 19 da instrução afirma que não será analisado pela Secom “o conteúdo das ações” patrocinadas por estatais quando forem “de publicidade mercadológica não vinculada apolíticas públicas do Poder Executivo federal”. Segundo Santos Cruz, a instrução normativa vai ser atualizada pelo governo, “se alei permitir ”, oque poderá eventualmente legitimar legalmente a interferência do Planalto na publicidade mercadológica das estatais. Ao GLOBO, um ex-secretário de Comunicação afirmou que a intervenção do Planalto nas ações mercadológicas das estatais poderia ter efeitos desastrosos para a saúde dessas empresas: —O governo tem interesses diferentes dos interesses do mercado. É justamente por isso que a norma impede que a Secom interfira nas estratégias mercadológicas das estatais. Essa interferência coloca em risco estratégias de mercado de cada empresa.

Opinião do GLOBO

Perda de tempo

BOLSONARO PRECISA hierarquizar os assuntos de sua agenda de trabalho, para não desperdiçar tempo. Vetar uma peça publicitária do Banco do Brasil pode alegrar a militância radical, porém não é trabalho para presidente.

SER FISCAL de costumes não pode disputar a atenção do presidente com assuntos de fato importantes. Quem precisa ajudar na construção de uma base política para viabilizar uma reforma estratégica como a da Previdência não deve desviar a atenção para filmetes de propaganda de estatais.

“A partir desta data o conteúdo de todas as ações publicitárias, inclusive de natureza mercadológica (...) deverá ser submetido para conformidade prévia da Secom”

Glen Valente, diretor da Secom, em e-mail enviado a estatais na quarta-feira

“Não observou estritamente o que diz na legislação, não tem validade ”

Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, aquema Secom está subordinada

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Atores que participam de vídeo criticam proibição

Dimitrius Dantas

João Paulo Saconi

27/04/2019

 

 

Reação variou entre surpresa e indignação. ‘Ele pode vetar, mas a ousadia já chegou, e o silêncio acabou’, diz rapper

Atores que participaram da propaganda do Banco do Brasil retirada do ar por determinação do presidente Jair Bolsonaro reagiram com surpresa e indignação ao veto à peça.

Desde que o GLOBO revelou a decisão do governo, a rapper Stella Yeshua, que atuou no filmete, vem recebendo ataques virtuais em seus perfis nas redes sociais. Ela tem 41 mil seguidores no Instagram, onde costuma tratar de temas como racismo e feminicídio.

— Eu não consegui entender (o motivo do veto). O comercial é limpo, não deixa ruídos, é simples. Mas o silêncio acabou, é uma nova geração, um novo posicionamento, uma nova vontade. Ele pode vetar, mas a ousadia já chegou, e o silêncio acabou —defende Stella. Ela diz que aceitou o convite por ver na oportunidade uma chance de dar mais representatividade a negros e negras na publicidade. — Eu sou rapper, não sou modelo, não sou atriz. Vi uma oportunidade para atingir um público maior e mostrar que a gente pode combater esse momento com diversidade. A ideia era ser inclusivo, mostrar que é possível ser para quem não é, mostrar que outras pessoas também podem —diz. Nem todos os que atuaram no comercial eram brasileiros. O ator e modelo Adande Videgla, conhecido pelo nome artístico de Miser Prav, é de Benim, país da região ocidental da África, e vive no Brasil há cinco anos. Ele disse ter sido surpreendido pela retirada do ar do filme.

— Eu não esperava, mas se o presidente deu a sua ordem, temos que aceitar querendo ou não. Sou apenas um estrangeiro vivendo da minha arte fora de casa. Acredito em dias melhores, com paz para o povo e para o presidente —diz o imigrante. Outra atriz da peça, Nathalia Mastrobiso, avalia que a decisão de Bolsonaro se agrava porque vai de encontro a outros posicionamentos do presidente que seriam a favor da liberdade de expressão, como o recente apoio prestado ao comediante Danilo Gentili. E diz não ver qualquer motivo para contestação do filme.

— Por ser um banco do governo, talvez o Bolsonaro achou muita baixaria ter diversidade, ter negros —ironizou Nathalia. — Não é como se várias pessoas estivessem indignadas com o comercial por uma coisa específica. Ninguém entendeu (o veto).