Valor econômico, v. 19, n. 4600, 29/09/2018. Brasil, p. A5

 

Lei Rouanet muda, mas desigualdade persiste

Thais Carrança

29/09/2018

 

 

As empresas decidem até o fim do ano onde vão colocar a maior parte dos seus recursos para financiar a cultura via renúncia fiscal pela Lei Rouanet. Apesar de uma iniciativa recente do Ministério da Cultura para tentar reduzir as enormes diferenças entre as verbas recebidas por Rio e São Paulo e o resto do país, especialistas avaliam que o movimento é insuficiente para mitigar as desigualdades.

Conforme dados do MinC, compilados para o Valor pela startup Simbiose Social, pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) e pela advogada Flávia Manso, o Sudeste recebeu, de 1993 a 2018, quase 80% do total de recursos captados em todo o país via Lei Rouanet. Em 2017, somente os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro receberam, respectivamente, 46% e 22% do total captado. Olhando apenas para as capitais destes Estados, os percentuais naquele ano foram de 40% e 20% do total.

O total de recursos captados na região Norte entre 1993 e 2018 corresponde a 15% do que foi obtido na região Sudeste apenas em 2017 ou a tudo que foi levantado no Sul só em 2017, destaca a CNM.

A Lei de Incentivo à Cultura (8.313/91), mais conhecida como Lei Rouanet, tem três instrumentos: os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts), o Fundo Nacional da Cultura (FNC) e o incentivo fiscal. O primeiro nunca foi implementado, o segundo enfrenta dificuldades por depender de verba do governo, o que fez o terceiro - também chamado de mecenato - se confundir com a própria lei.

Pelo mecanismo de incentivo fiscal, empresas e pessoas físicas podem aplicar uma parcela do Imposto de Renda devido para apoiar projetos aprovados pelo Ministério da Cultura. Os recursos captados no ano passado somaram R$ 1,19 bilhão, sendo R$ 937 milhões destinados ao Sudeste. O Estado de São Paulo recebeu sozinho R$ 542 milhões, e a capital paulista, R$ 485 milhões.

"A concentração de recursos no Sudeste é um fenômeno presente em todas as leis de incentivo federais e muito evidente na Lei Rouanet", observa Octavio Augusto de Barros, diretor da Simbiose Social, startup que visa ajudar empresas a melhorar seus investimentos via leis de incentivo. Isso tem relação com a demanda da região, a mais populosa e rica do país, mas também revela uma ineficiência da política pública.

"Há uma desigualdade gritante entre todos os municípios de São Paulo e Rio, por estes serem polos onde se concentram as empresas", acrescenta Flávia Manso, responsável pela área de incentivo fiscal do Cesnik Quintino e Salinas Advogados. "Quando o patrocinador escolhe um projeto, ele quer expor sua marca no mercado onde atua."

Para mitigar o problema, a Cultura editou uma instrução normativa em março de 2017, substituída por nova regulação em dezembro daquele ano. A Instrução Normativa do MinC 5 ampliou o limite referentes à quantidade e aos valores de projetos que podem ser apresentados pelos proponentes, em até 25% para projetos integralmente realizados na região Sul e em Minas Gerais e no Espírito Santo; e em até 50% para Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Outra mudança foi elevar o limite para remunerar captadores de recursos, de 10% do valor do custo do projeto integralmente realizados nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, para 12,5% no Sul e em Minas Gerais e Espírito Santo e 15% no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Na visão de Flávia, as mudanças são insuficientes para uma desconcentração dos recursos. "O proponente ainda está livre para trabalhar com o limite anterior de projetos, que não é baixo - são 16 projetos para pessoas jurídicas sem fins lucrativos. Só atingindo isso é que, se quiser fazer mais, teria que ir para essas outras regiões", diz.

Já a medida que aumenta o percentual destinado ao captador só será efetiva se houver um avanço no números de projetos apresentados nessas regiões, acredita a especialista. Em 2017, por exemplo, foram apresentados 3.152 projetos no Sudeste, ante 1.192 no Sul, 373 no Nordeste, 181 no Centro-Oeste e 78 no Norte, pelos dados do MinC.

Com uma visão distinta, a CNM identifica um princípio de desconcentração dos recursos já em 2017, que parece ter continuidade em 2018 - ainda que neste ano, o grosso da alocação de verbas ainda não tenha acontecido. Segundo a confederação, os recursos captados pelo Sudeste chegavam a 80,49% do total em 2016, caindo a 78,85% em 2017 e para 74,35% até agosto deste ano.

"É ainda muito acanhada, mas começou uma desconcentração", diz Glademir Aroldi, presidente da CNM. Segundo ele, ainda não é possível afirmar com certeza que isso já é efeito das normativas de março e dezembro, mas os números de 2018 poderão trazer pistas adicionais.

A CNM destaca, porém, que a nova regra trata apenas das desigualdades regional e interestadual (entre estados), mas não ataca as diferenças "intraestaduais" - verificadas entre capitais e interior dos estados, mesmo na região Sudeste.

Do total dos recursos captados no Sudeste entre 2016 e 2018, 78,2% foram para as capitais do Rio e São Paulo, destaca a confederação. "Ou seja, o interior dos Estados - que somam 735 municípios - podem se encontrar em realidades equivalentes a das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul e dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo."

Para Barros, da Simbiose Social, o fato de a Rouanet ter ficado praticamente restrita ao mecenato explica em parte esta distorção. "Algumas ineficiências do mercado em termos de distribuição com foco social seriam supridas pelo Fundo Nacional da Cultura, que acaba sendo afetado pelo contingenciamento de verbas do governo federal", diz.

Flávia, do CQS Advogados, acredita que uma solução possível seria atribuir pontuações aos projetos, de acordo com a região, com abatimentos fiscais diferenciados. Esse modelo constava da proposta do Procultura, uma tentativa de corrigir distorções da Rouanet apresentada em 2010 na gestão de Juca Ferreira, e que está parada no Congresso.

A advogada ressalva que não achava o projeto de Juca de todo bom, por ter uma visão muito "social", que, na sua visão, desconsidera o aspecto econômico da cadeia produtiva da cultura.

Mesmo dentro do ambiente regulatório atual, é possível caminhar para uma maior desconcentração com uma mudança de cultura por parte das empresas, acredita o diretor da Simbiose Social. "Hoje o consumidor busca marcas mais sustentáveis e com uma preocupação maior com impacto social, as empresas podem atingir esse público patrocinando projetos com essas preocupações", afirma.

Em nota, o Ministério da Cultura reconhece "que falta no arsenal de mecanismos de fomento à cultura em nível federal um programa de fomento direto, complementar ao mecenato". Esse instrumento poderia contar com cotas regionais para alocação de recursos e coinvestimento com estados, capitais e consórcios de municípios, a exemplo do Fundo Setorial do Audiovisual.

Conforme a pasta, o Fundo Nacional de Cultura é um fundo contábil do Tesouro e está sujeito às limitações do Orçamento da União. "O ideal seria transformá-lo num fundo financeiro", defende o MinC. "E também destinar recursos das loterias diretamente pela Caixa a projetos culturais, sem passar pelo Tesouro."

Em julho, após polêmica envolvendo a destinação dos recursos das loterias para a segurança pública, o presidente Michel Temer assinou medida provisória devolvendo percentual desses recursos à cultura e ao esporte. A medida ainda precisa ser apreciada pelo Congresso.