Valor econômico, v. 19, n. 4600, 29/09/2018. Opinião, p. A12

 

Aos 30 anos da Constituição, poderes fortes e controles fracos

Charlme Pessanha

29/09/2018

 

 

"Sem controle externo, uma maioria tiraniza uma minoria ou uma minoria tiraniza uma maioria". (Robert Dahl)

A Constituição de 1988, ao contrário das anteriores, foi a que mais se aproximou do desejado equilíbrio entre poderes. Todas as outras versões fortaleceram o Executivo em detrimento dos outros poderes, exceto a de 1946, quando o Legislativo dispôs de prerrogativas competitivas. No texto vigente, estamos diante de três poderes fortes.

O Poder Executivo incorporou grande parte das atribuições criadas durante o regime militar, como o inusitado poder de apresentar emendas à Constituição, o uso de legislação de emergência como medidas provisórias e a legislação delegada. Com exceção das leis delegadas - apenas duas durante as três décadas -, as atribuições previstas foram usadas sem parcimônia. Das 99 emendas constitucionais promulgadas até maio de 2018, 25 são de iniciativa do Poder Executivo, contra 34 e 40, respectivamente, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

O uso indiscriminado das medidas provisórias foi alvo de críticas, sobretudo da prática das chamadas reedições, até a promulgação da Emenda Constitucional nº 32/2001, que limitou a uma a reedição de cada medida, totalizando cerca de 2.200 medidas no primeiro período e 842 no segundo. Outro fator de fortalecimento do Executivo foi o aumento qualitativo e quantitativo das matérias reservadas à iniciativa exclusiva do presidente da República.

O Poder Legislativo, embora limitado nas iniciativas legislativas, aumentou seu poder de fiscalização de forma surpreendente. Registre-se que legislar é tarefa concorrente do Executivo e do Legislativo, mas fiscalizar não; é competência privativa do Congresso Nacional. Obteve o direito de revogar decretos do Executivo, assistiu ao fortalecimento do controle externo, seja no aumento da amplitude do controle, seja no recrutamento da maioria dos membros do Corpo Deliberativo do Tribunal de Contas da União (TCU), quebrando um monopólio do Poder Executivo, que nomeava a totalidade dos membros desde a primeira Constituição republicana.

Além disso, o Senado, já responsável pelo julgamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), aumentou o número de autoridades submetidas a seu controle - diretoria do Banco Central e procurador-geral da República; nesse caso, admissão e possível demissão. Além de incluir novas autoridades sob seu controle, o texto constitucional, ao contrário dos anteriores, deixou em aberto a inclusão de novos cargos, o que permitiu mais tarde a inclusão das diretorias das agências criadas pela reforma do Estado nos anos 1990. Por fim, o Congresso Nacional manteve o direito de julgar anualmente as contas prestadas pelo presidente da República.

O uso das novas prerrogativas, contudo, foi desalentador. A indicação das seis vagas de ministros do Tribunal de Contas pelo Legislativo foi decepcionante. Câmara dos Deputados e Senado Federal dividiram entre si as vagas e nomearam parlamentares sem a expertise necessária, algumas vezes de reputação duvidosa, o que levou, em pelo menos dois casos, a reações da imprensa e dos próprios funcionários do Tribunal, forçando a retirada das indicações pela Câmara Alta.

O controle das nomeações das autoridades pelo Senado se tornou uma enfadonha sessão de troca de elogios e de amabilidade, desconhecendo-se durante as três décadas qualquer veto mais importante. O julgamento das contas presidenciais não foi diferente. O TCU aprecia os relatórios dentro dos prazos estabelecidos, emite os respectivos pareceres, mas o Congresso Nacional não os julga em períodos razoáveis. Ainda restam sem julgamento as contas de Fernando Collor de Mello, uma de Fernando Henrique Cardoso, todas de Luiz Inácio Lula da Silva e as relativas ao primeiro mandato de Dilma Rousseff.

Curiosamente, as contas de Dilma Rousseff, que deram origem ao processo de seu impedimento, foram julgadas rapidamente apenas pela Câmara dos Deputados, até a presente data, em flagrante desrespeito ao texto constitucional, que estabelece de forma clara que devem ser votadas pelo Congresso Nacional.

O Poder Judiciário teve, pela primeira vez, seu fortalecimento de direito e de fato ao assegurar ao STF as funções de corte de justiça, com poder de revisão judicial, e corte constitucional, como guardião da Constituição. O crescimento de seu protagonismo veio ainda de forma indireta pelo que se convencionou chamar de "revolução processual", com o aumento do número de titulares da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), da Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPC) e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) entre outros institutos. Acrescem-se a isso as novas prerrogativas e a independência do Ministério Público como representante dos interesses indisponíveis da sociedade, contribuindo para o aumento do acesso à justiça e, consequentemente, da demanda ao Judiciário.

O controle externo do Poder Judiciário não é mais animador. Evitado durante toda a Assembleia Constituinte por pressão da magistratura, que, por meio de suas associações representativas e dos tribunais superiores, manifestou-se diretamente contra sua criação, o Conselho Nacional de Justiça foi finalmente criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Um conselho com atribuições limitadas, meramente administrativas, cujas fragilidades já se esboçam em seu formato institucional: de seus 15 membros, nove são indicados pela cúpula do Poder Judiciário, o que levou alguns, como o hoje ministro Luís Barroso, a descaracterizá-lo como órgão de controle externo.

Sua existência foi contestada pelo Poder Judiciário durante a Constituinte, a tramitação da emenda constitucional, na época de sua promulgação da Emenda que o criou e a cada medida de controle mais efetiva. Sua impotência diante da questão das gratificações irregulares recebidas até por seus membros ilustra muito bem seu malogro como instituição de controle.

O STF, em que pese ter votado questões importantes como as cotas raciais e as relações homoafetivas, pouco contribuiu para a normalidade institucional ao emitir decisões dúbias sobre temas semelhantes, não enfrentar o problema dos pagamentos considerados indevidos e nem sequer ter elaborado um código de ética para seus membros, que protagonizaram desavenças públicas não condizentes com o decoro da instituição.

A negligência com o controle externo - aquele exercido por órgão estranho ao ato praticado - é, certamente, uma clara dificuldade para o desenvolvimento e a consolidação da democracia.