Valor econômico, v. 18, n. 4593, 20/09/2018. Brasil, p. A2
UE frustra plano de Temer, que sai sem acordos comerciais relevantes
Daniel Rittner
20/09/2018
Apesar do discurso reformista e liberalizante, o presidente Michel Temer deverá encerrar sua passagem pelo Palácio do Planalto sem a assinatura de nenhum acordo comercial relevante. Fracassou na semana passada, em Montevidéu, a última tentativa do Mercosul e da União Europeia de costurar as bases de um tratado de livre-comércio ainda neste ano. A reunião técnica na capital uruguaia foi considerada tão improdutiva que os dois blocos nem sequer estabeleceram uma agenda para dar sequência às tratativas.
Diante da mudança de governo no Brasil e da deterioração macroeconômica na Argentina, a expectativa é de retomada das negociações só em 2019. Com dois complicadores: vai ser um ano de eleições legislativas para eurodeputados (maio) e de troca de comando na Comissão Europeia (outubro). A tendência, segundo fontes ouvidas pelo Valor em Bruxelas, é evitar decisões polêmicas em meio a esse calendário.
Em pouco mais de dois anos de governo Temer, o Mercosul abriu quatro frentes de negociações extrarregionais: Canadá, Coreia do Sul, Cingapura e o bloco de países europeus conhecido pela sigla EFTA (Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). Em nenhum dos casos há chance de acordo ainda em 2018. A discussão mais avançada é com o EFTA. No início de julho, houve troca de ofertas de liberalização comercial. Mas um tratado só poderia ser firmado, na melhor das hipóteses, no primeiro semestre do ano que vem.
"O ambiente internacional ficou menos propício para as negociações comerciais justamente no momento em que o Mercosul demonstra interesse em avançar com maior rapidez", afirma o diretor de desenvolvimento industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Carlos Abijaodi. Para ele, foi importante ter adotado uma postura mais ativa e aberto várias frentes simultâneas com protagonistas do comércio mundial. "Não dá para voltar atrás. Precisamos nos inserir nas cadeias globais de valor."
A única negociação com grande possibilidade de ser concluída, segundo fontes diplomáticas, é na América do Sul. Brasil e Chile têm um acordo de livre-comércio em vigência desde 1996. Ele já eliminou tarifas de importação sobre praticamente 100% do intercâmbio comercial entre os dois países. Mais de duas décadas depois, precisa ser modernizado.
A nova versão do acordo deverá cobrir temas como medidas sanitárias e fitossanitárias, normas aduaneiras, barreiras técnicas, ambiente e assuntos trabalhistas. Também se prevê maior abertura em serviços. Seis capítulos já foram fechados. Os negociadores voltam a se reunir de 16 a 19 de outubro, em Santiago, e a perspectiva realista é ter o anúncio de um tratado em dezembro.
Outra negociação bilateral, sem o Mercosul, envolvia Brasil e México. As duas maiores economias da América Latina aplicam atualmente descontos nas tarifas de importação para um universo de apenas 792 produtos. E combinaram, durante visita da ex-presidente Dilma Rousseff à Cidade do México em 2015, ampliar ao "máximo possível" o entendimento existente no prazo de um ano. Mais de três anos depois, as conversas estão travadas.
Os mexicanos já deixaram claro às autoridades brasileiras que esperam a revisão definitiva do Nafta - área de livre-comércio com Estados Unidos e Canadá - para avançar em outras negociações. Agora, que existe uma revisão preliminar do tratado com o governo Donald Trump, a troca de governo mantém as tratativas em banho-maria. O esquerdista Andrés Manuel López Obrador assume em 1º de dezembro sem que haja clareza sobre os próximos passos da política comercial.
A demora na entrega de resultados reforça o discurso de quem apregoa uma abertura comercial sem, necessariamente, a exigência de contrapartidas. "O caminho das negociações é incerto", observa Gabriel Petrus, diretor-executivo do comitê brasileiro da Câmara de Comércio Internacional (ICC Brasil). "Para alguns setores, é o caso de se pensar em redução unilateral das tarifas de importação."
Na avaliação de Petrus, o Brasil ainda tem alíquotas altas para bens de capital e bens intermediários usados na indústria. "Somos um dos países que menos reduziram tarifas desde a Rodada Uruguai [1986-1994]", afirma o especialista. "Isso impede ganhos horizontais e sistêmicos para a economia. Precisamos quebrar o paradigma de que importar é ruim."
Nenhuma frustração é tão forte, no setor privado e no próprio Palácio do Planalto, como a falta do acordo UE-Mercosul. Os negociadores europeus encerraram a penúltima reunião, em julho, prometendo fazer consultas internas aos 28 países-membros para verificar a possibilidade de novas concessões. Chegaram à reunião da semana passada sem oferecer aumento das cotas para produtos agrícolas (como carne bovina e etanol) e com os mesmos pedidos (por exemplo, o reconhecimento dos sul-americanos para produtos com indicações geográficas, como queijo parmesão e presunto de parma).
Para o diplomata aposentado Régis Arslanian, que foi negociador-chefe do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e hoje atua como consultor, houve foco excessivo em questões agrícolas e o Mercosul deixou de valorizar outros aspectos de um acordo com a UE. Para ele, um tratado de livre-comércio poderia revigorar o combalido bloco sul-americano e criar ambiente mais propício para investimentos europeus na região, além de abordar temas como barreiras não tarifárias e abertura de serviços.
"Estamos sacrificando um universo de benefícios", diz. O ex-embaixador lembra que as 99 mil toneladas de carne bovina oferecidas pela UE ao Mercosul, como cota com acesso privilegiado ao mercado europeu, equivalem a cinco carregamentos de navio. "Vale a pena condicionar um acordo com tantas vantagens em termos de investimentos, serviços e estatura política para o Mercosul a exigências agrícolas que se resumem a cinco carregamentos de carne?", questiona.