Valor econômico, v. 19, n. 4592, 19/09/2018. Política, p. A10

 

Entrevista - Marina busca voto útil contra a polarização entre Bolsonaro e Haddad

Marina Silva

Daniela Chiaretti 

19/09/2018

 

 

O motorista de táxi Sergio Santos segue a van da candidata Marina Silva até o hotel na capital sergipana. "As esquerdas têm que se unir", recomenda. "Marina é da esquerda, mas não decola", lamenta. Empatada com Geraldo Alckmin (PSDB) em quarto lugar na pesquisa Ibope divulgada ontem à noite, Marina tenta se viabilizar no espaço do voto útil contra a polarização entre a candidatura de Jair Bolsonaro, do PSL, e de Fernando Haddad, do PT. "Fui eu quem disse pela primeira vez que Bolsonaro e o PT eram cabos eleitorais uns dos outros", resume a ex-senadora.

A candidata da coligação Rede-PV enxerga como um risco à democracia o "movimento político que aglutinou pessoas que não têm nenhum zelo pelos direitos humanos, pelo respeito à diferença". Tal expressão da sociedade, acredita, surgiu da frustração com o "discurso moralista da esquerda populista" e da "prática sem compromisso social da centro-direita, a suposta social-democracia."

Procurando alternar agendas políticas entre Estados do Norte/Nordeste e do Sul-Sudeste, Marina critica a visão de "que se o mercado está funcionando, o resto não é tão importante". Diz que "tem gente precificando o Bolsonaro". Explica: "Já assimilando, fazendo uma escolha rápida. Dizendo: o importante é que tem alguém que diga que o mercado está garantido."

Na visão da ex-ministra do Meio Ambiente, "a política está indo para um caminho muito perigoso.". Marina Silva alerta para o "poder da multidão, de quem consegue vocalizar em uníssono uma ideia, uma inverdade por cima da realidade.". Para ela, "isso é um passo para as ditaduras. É uma espécie de pré-fascismo."

A menos de 20 dias do primeiro turno, ela diz que quer "passar o Brasil a limpo de verdade." Mas se pergunta se conseguirá convencer, a tempo, os eleitores disso. A seguir, os principais momentos da entrevista de Marina ao Valor:

Valor: A candidatura de Jair Bolsonaro coloca em risco a democracia do país?

Marina Silva: Bolsonaro sempre foi Bolsonaro. Com ideias autoritárias, o saudosismo da ditadura, uma visão preconceituosa contra índio, mulher, pobre. A diferença agora é que um grupo de pessoas começou a aderir e a manifestar um pensamento desta magnitude. O que me preocupa mais como risco à democracia é ver uma quantidade de pessoas, que sem nenhum zelo pela democracia, pelos direitos humanos, pelo respeito à diferença transformou isso em um movimento político. Essa nova forma de manifestação de um pensamento de uma direita extrema, é um risco para a democracia. E a pergunta que temos que fazer é onde foi que isso fertilizou?

Valor: Onde foi?

Marina: No meu entendimento tem a ver com um discurso moralista por parte da esquerda populista e também com a prática sem compromisso social por parte da centro-direita, a suposta social-democracia.

"Acredito que fui eu quem disse, pela primeira vez, que Bolsonaro e o PT eram cabos eleitorais uns dos outros"

Valor: Um moralismo populista da esquerda?

Marina: Sim, fantasiado de ética, de combate à corrupção, de compromisso social com os mais pobres. E a visão do pensamento de centro-direita de que se o mercado está funcionando, o resto não é tão importante. No momento em que estes dois pensamentos desmontam, criam grandes decepções na sociedade. De repente o PSDB desmorona com corrupção, algo que começou na compra dos votos para a reeleição, e que só se aprofunda. O tiro de misericórdia foi o Aécio [o senador Aécio Neves] com a JBS. O PT, a mesma coisa. Isso criou uma espécie de revanche mesmo.

Valor: E vem daí a insatisfação?

Marina: Sim. É como se dissessem: "Vocês, que sempre ditaram os padrões, um código de comportamento político, agora aguentem a nossa revolta." Mas a nossa indignação tem um teto para se manifestar.

Valor: Um teto?

Marina: Sim. O teto que garante que podemos manifestar a nossa indignação é a democracia. Mas neste momento as pessoas parecem estar esquecendo que qualquer ação política não pode colocar em risco o que garante uma ação política independente, autônoma e livre. Que é a democracia.

Valor: Há quem considere, qualquer que seja o resultado da eleição, Jair Bolsonaro vencedor. Justamente porque a candidatura dele abriu frentes da sociedade que estavam retraídas. A senhora concorda?

Marina: Discordo. A derrota ou a vitória a gente só mede na história. E Bolsonaro já teve uma grande derrota.

Valor: Qual?

Marina: O que ele tem como estratégia principal, que é o uso da força como forma de organizar, se mostrou muito frágil. Não conseguiu organizar nem um cordão de proteção para ele próprio. Graças a Deus que não era uma arma de fogo, graças a Deus que as leis que ele quer mudar, para liberar porte de arma, ainda não foram aprovadas. Porque ele, fortemente protegido por pessoas armadas, não foi capaz de proteger a si próprio. Sua principal bandeira foi desmoralizada por um ato. O que ele prega como forma de organizar e melhorar o país, só leva à destruição.

Valor: A senhora acredita que 2019 será difícil qualquer que seja o novo presidente, com várias forças radicais da sociedade fortalecidas?

Marina: É uma conjunção de dificuldades. Tem a ver com a crise econômica, com a crise institucional que estamos administrando em uma linha muito tênue. Mas porquê estes radicalismos se colocam exatamente agora? Boa parte do que está acontecendo é em função da polarização que levou o Brasil a esta situação de insegurança política, insegurança econômica e insegurança institucional. Visões autoritárias de direita e de esquerda fazem isso. Primeiro eles fazem a violência política, depois tentam eliminar o objeto de sua contrariedade.

"O poder de quem consegue vocalizar em uníssono uma inverdade, é muito perigoso. É uma espécie de pré-fascismo"

Valor: Há uma nova polarização surgindo, entre a candidatura de Bolsonaro e a de Fernando Haddad. Existe uma disputa por outra via, a do voto útil. Como sua candidatura se insere neste contexto?

Marina: Acho que fui eu quem disse pela primeira vez que Bolsonaro e o PT eram cabos eleitorais uns dos outros.

Valor: Como vê esta dinâmica?

Marina: Trabalharam para chegar o momento em que pudessem se ajudar, um ao outro, para ir ao segundo turno. Continuam fazendo isso agora.

Valor: Como a senhora se situa nesta estratégia do voto útil?

Marina: Eu me situo como alguém que, desde 2010, percebendo isso, insistia na ideia de que era preciso um novo realinhamento político. Mas os grandes partidos aprofundaram mais a polarização. E eles, que nunca se uniram a favor do Brasil, agora estão unidos a favor de acabar com a Lava-Jato. PT, PMDB, PSDB e DEM têm um ponto de contato: acabar com a Lava-Jato. Não por acaso Haddad falou que está disposto a dialogar com o PSDB caso ganhe. Isso não é em torno do discurso de unir o Brasil. Eu me situo em um lugar onde não há nenhum tipo de conivência com este tipo de articulação. Quero passar o Brasil a limpo de verdade. É possível convencer as pessoas disso? De que este é o melhor caminho? Uma transição? Acabar com a reeleição, mandato de quatro anos, estabelecer uma nova governabilidade?

Valor: É possível convencer a sociedade disso?

Marina: Estou tentando. Mas quando não se faz o discurso fácil "de nós contra eles", há mais dificuldade. É difícil mobilizar as pessoas para serem razoáveis. Fácil é mobilizar para dizer é "o grande mal da esquerda" ou "é o grande mal da direita". As visões do "grande mal" são sempre o discurso de projetos autoritários, seja de direita ou de esquerda. Talvez isso explique a situação em que chegamos. Já tem muita gente precificando o Bolsonaro.

Valor: Como "precificando o Bolsonaro"? O que quer dizer?

Marina: Já assimilando, fazendo uma escolha rápida. Dizendo: o importante é que tem alguém que diga que o mercado está garantido. Em uma cultura política como esta, em uma cultura empresarial com estes valores, não poderíamos estar diferentes.

Valor: A senhora têm dito que as pesquisas são um "retrato do momento". Mas elas também têm o poder de desestimular quem poderia votar na senhora, por exemplo.

Marina: Mas este desestímulo não acontece só no momento das pesquisas. É feito pela compra do discurso de que para ganhar uma eleição você tem que ter dinheiro, marqueteiro e estrutura. Como se isso fosse um dado de realidade imutável. É assim, tem que ser assim, e nada que possa parecer diferente tem condição de prosperar. Vou continuar lutando para que não seja assim. Aprendi isso com aqueles que resistiram durante a ditadura. Vejo as pessoas dizendo: "Tem que negociar mesmo com Centrão, com não sei quem". Essa cultura do "é assim mesmo" cultiva isso. Sou desertora do "é assim mesmo". Não é assim mesmo. Se eu achasse que é assim mesmo, até hoje a Amazônia era para ser derrubada, índio era para virar branco. Se a gente achasse que é assim mesmo, até hoje mulher nem votava. Essa cultura do "ah, é assim mesmo" é uma desgraça para a democracia. É isso que cultiva essas anomalias que estão acontecendo na nossa jovem retomada democrática.

Valor: A senhora tem falado sobre o impacto da banalização da corrupção na política brasileira.

Marina: O "rouba mas faz" foi banalizado a partir de 2014, quando a Lava-Jato mostrou que PT, PMDB, PSDB, DEM eram farinha do mesmo saco. O "rouba mas faz" virou um acordo tácito. Rouba mas é de direita, rouba mas é de esquerda, rouba mas faz política social. Isso precisa ser banido da cultura política brasileira. Não tem que ter licença política para ser corrupto. Durante a ditadura, artistas, intelectuais, formadores de opinião estavam todos juntos para combatê-la. Hoje temos um silêncio diante do que é óbvio e inaceitável, há uma negação da realidade. Outro problema é o poder do decreto.

Valor: O que quer dizer?

Marina: A política está indo para um caminho muito perigoso. Um grupo te olha e diz que você está de vermelho mesmo se você está vestida de azul. E não adianta você dizer que está de azul, porque todos irão repetir que você está de vermelho. É o poder da multidão, de quem consegue vocalizar em uníssono uma ideia, uma inverdade por cima da realidade. Isso é um passo para as ditaduras. É uma espécie de pré-fascismo.