Valor econômico, v. 19, n. 4618, 26/10/2018. Política, p. A6 e A7

 

Em vantagem, Bolsonaro fica longe da rua

Cristian Klein

Cristiane Agostine 

26/10/2018

 

 

Uma dezena de batedores da tropa de choque da Polícia Militar abre caminho para o carro de vidros escurecidos. Dentro do veículo, mal se pode ver a presença de Jair Bolsonaro (PSL), que sai às pressas do condomínio da Barra da Tijuca, no Rio. Agentes da Polícia Federal se posicionam em frente a uma ampla casa no bairro de elite do Jardim Botânico e, em poucos segundos, o automóvel desaparece do campo de visão, ao entrar na garagem. Entre os dois principais quartéis generais de Bolsonaro no segundo turno da eleição ao Planalto, não há caixas de som repetindo jingles, bandeiras tremulando, distribuição de "santinhos" ou discursos políticos. Numa campanha blindada, o líder das pesquisas fez menos esforço para pedir votos - por alegações médicas, de segurança ou estratégicas - do que um candidato a vereador em Glicério (SP), sua terra natal, com 4 mil eleitores. Percorreu trajetos de no máximo 30 quilômetros em busca do apoio dos 147 milhões de eleitores de todo o país.

Em três semanas de campanha no segundo turno e com vantagem folgada sobre o adversário Fernando Haddad (PT), Bolsonaro ficou na defensiva. Com esquema de segurança semelhante ao de um chefe de Estado, não teve contato direto com simpatizantes, não tirou selfies, não houve multidões em aeroportos, nem as carreatas que cogitou depois da vitória no primeiro turno. O candidato evitou os debates - ou fugiu deles, como acusou o oponente petista -, comunicou-se por transmissões pela internet e escolheu a dedo os poucos veículos de imprensa a quem concedeu entrevistas.

Longe das ruas, Bolsonaro concentrou-se em articulações políticas dentro de casa, onde recebeu adesões em bloco das bancadas BBB - boi (ruralista), bala (segurança) e Bíblia (evangélicos) e negou apoios individuais, como ao ex-prefeito João Doria (PSDB), candidato ao governo paulista. Do condomínio, saiu para poucas agendas em locais fechados. Esperou oito dias para fazer o primeiro ato de campanha e ficou entre a cruz e as armas. Visitou o arcebispo Dom Orani Tempesta e foi a duas corporações da polícia: a Federal e o Bope, onde disse que, se eleito, a tropa de elite da PM do Rio terá "um dos nossos lá em Brasília". "Caveira!", gritou ao fazer campanha nas dependências de uma repartição pública, o que é proibido por lei e foi alvo de contestação na Justiça. Nas outras saídas, gravou programas eleitorais, no Jardim Botânico, no estúdio montado na residência do empresário Paulo Marinho, primeiro suplente de senador na chapa de seu filho Flávio Bolsonaro (PSL).

Com presença mais discreta nos bastidores do primeiro turno, Paulo Marinho ganhou visibilidade na reta final da eleição. Figura conhecida do setor empresarial e da mídia carioca, Marinho é lembrado pela participação em negócios e litígios de cifras milionárias com empresários como Daniel Dantas e Nelson Tanure, e pela relação com a atriz Maitê Proença, ex-mulher com quem tem uma filha. Outros dois filhos - um participante de reality show e o outro que é imitador quase perfeito de Bolsonaro - orbitaram no burburinho da imprensa que se concentrou na casa do Jardim Botânico.

São poucas as semelhanças entre os rebentos de Marinho e os filhos políticos de Bolsonaro - além de Flávio, há Eduardo, reeleito por São Paulo para a Câmara, e Carlos, vereador do Rio. Do mesmo modo, são nada similares as trajetórias do capitão reformado do Exército, oriundo de uma família pobre e interiorana, e do empresário e "bon vivant". Pessoas próximas de Marinho o qualificam como 'gastador', que gosta de exibir um alto padrão de vida, mas ao mesmo tempo um homem 'cortês', 'jeitoso' no convívio social, 'cativante', 'sedutor', com uma 'capacidade invejável de se relacionar'. "Poucas pessoas conhecem tantas pessoas como o Paulo", afirma um amigo há mais de 30 anos. Seu primeiro casamento foi com a rica atriz francesa Odile Rubirosa, 15 anos mais velha, viúva do playboy dominicano bilionário Porfirio Rubirosa, cujo currículo de amantes incluiu de Marilyn Monroe a Rita Hayworth, de Judy Garland a Kim Novak e Eva Perón.

No início do ano, seu plano era emplacar o projeto presidencial de João Doria. Organizava jantares e ciceroneava o tucano nas visitas frequentes que ele fazia para angariar apoio entre o empresariado carioca. Com o fracasso do projeto Doria ao Planalto, Marinho, de 66 anos, se aproximou de Bolsonaro, de 63, a convite do antigo amigo que estava à frente da pré-candidatura do capitão: o advogado e presidente do PSL Gustavo Bebianno, de 54 anos. Eles se conheceram no escritório do advogado Sérgio Bermudes, que em meados dos anos 1980 havia atendido demandas jurídicas do primeiro festival Rock in Rio, em 1985, idealizado pelo publicitário Roberto Medina.

Marinho era o executivo que cuidava da gestão de todo o festival e frequentava o escritório, onde fazia amizade com os advogados. Entre eles estava Bebianno, que havia sido aluno de Bermudes na faculdade de direito da PUC. Interessado em ter uma experiência empresarial, Bebianno foi indicado para assumir o cargo de diretor jurídico do "Jornal do Brasil", do qual saiu para voltar ao escritório e dali partiu para os Estados Unidos. Queria ter uma vivência internacional, ganhar mais domínio na língua inglesa e abrir uma academia de jiu jítsu, arte marcial na qual é faixa preta. A investida não saiu como o planejado e Bebianno retornou ao Brasil. Há três anos, conta um amigo, atravessou uma época de "vacas magras" em que mapeou e regularizou parte dos mais de 1.300 imóveis da Arquidiocese do Rio.

O braço-direito de Bolsonaro é neto de Adhemar Bebianno, ex-presidente do Botafogo entre 1944 e 1947 e patrono responsável por bancar despesas do clube, como a compra do craque Didi. Coincidência ou não, a torcida pelo time carioca é compartilhada pela linha de frente da campanha. Tanto Marinho quanto Gustavo Bebianno, assim como Bolsonaro e seus filhos são alvinegros e formam uma espécie de "República do Botafogo", da qual só escapa o vascaíno Flávio.

Ainda que o filho mais velho tenha Marinho como suplente, a indicação foi feita por Bebianno, numa divisão que reflete disputa por espaço entre a família e o grupo do PSL, liderado pelo advogado. Marinho funciona como um algodão entre cristais. Vice-presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Hélio Ferraz, é amigo do empresário há 40 anos e acompanhou de perto a trajetória que foi de Doria a Bolsonaro. No dia em que o candidato do PSL levou uma facada em Juiz de Fora (MG), Ferraz estava na casa de Marinho, onde a mulher de Bolsonaro, Michelle, se preparava para fazer uma gravação. Tão logo percebeu a gravidade do atentado, o anfitrião pegou o carro com motorista, Michelle e foram à cidade mineira. "Ele se aproximou muito da família no momento desse trauma", diz Ferraz.

Outro personagem importante na campanha, já anunciado para a Casa Civil em um eventual governo, é o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Veterinário, o "gauchão", como é chamado por Bolsonaro, foi convidado em fevereiro de 2017 para estruturar a candidatura.

A amizade começou perto da realização do referendo do Estatuto do Desarmamento, em 2005, quando os dois parlamentares participaram da campanha em defesa do registro, posse e comercialização de armas. Onyx ganhou destaque nacional no mesmo ano, como integrante da CPI dos Correios, onde talhou o seu discurso antipetista e começou a escrever uma trilogia com cinco livros contra o PT.

Em sintonia com Bolsonaro, Onyx foi indicado como testemunha de defesa do presidenciável no Supremo Tribunal Federal (STF) no processo movido pela deputada Maria do Rosário (PT-RS), por injúria e incitação ao crime de estupro.

O deputado engajou-se na candidatura quando ainda era vista como simples chacota. Onyx diz que as manifestações depois da eleição de 2014 e os atos pelo impeachment de Dilma Rousseff mostraram o terreno fértil. Por isso, fez a aposta. Na Câmara, era um dos responsáveis pela contagem de votos em favor do impeachment e por buscar mais apoios na base aliada.

O discurso anticorrupção do deputado, porém, caiu em contradição quando veio a público, no ano passado, o recebimento de R$ 100 mil via caixa dois da JBS, em 2014. Apesar do escândalo, Onyx foi mantido por Bolsonaro como seu articulador político e continuou a costurar apoios, em encontros marcados em sua casa, nos quais cozinhava para parlamentares. O deputado anunciou a adesão de 110 deputados, mas não divulgou os nomes, pondo em xeque a credibilidade da tal lista.

O foco do deputado, porém, era fora da Câmara, nas redes sociais. "Com o impeachment da Dilma nasceu uma nova cidadania, de quem não tem engajamento partidário. Por conta da ação do PT violenta em cima da família, renasceu uma demanda por princípios e valores. Daí foi um grande acerto do Jair: ele não falou um projeto. Só falou de princípios e valores a campanha toda", diz Onyx. "E é isso que deu a ele no Nordeste a maior votação de um opositor ao PT na região." A grande arma, afirma o deputado, é o WhatsApp.

Nas redes sociais, em entrevistas e na propaganda eleitoral no segundo turno, Bolsonaro manteve o discurso radical. Criticou políticas afirmativas, disse ser contra cotas raciais e afirmou que a melhor forma de combater o racismo é não falar sobre esse tipo de crime. Disse ainda que é preciso acabar com o "coitadismo" de negros, gays, mulheres e nordestinos. A militantes reunidos na avenida Paulista a uma semana das eleições, disse que vai banir os "marginais vermelhos" do país, em referência aos petistas, e deu a eles duas opções: o exílio ou a prisão.

Nas ações nas redes sociais, Bolsonaro tem o apoio não só dos filhos, mas também de empresas suspeitas de espalharem milhares de mensagens contra o PT, boa parte "fake news". Por trás das ações propagandeadas como voluntárias, de simpatizantes, estariam contratos milionários, não declarados na prestação de contas do presidenciável como doações. O repasse de empresas a candidaturas é vedado.

Além da disseminação de críticas ao PT, apoiadores de Bolsonaro intensificaram as ameaças e ataques a jornalistas e meios de comunicação. Autora de uma reportagem sobre o suposto pagamento de empresários a uma campanha anti-PT via WhatsApp, uma jornalista da "Folha de S.Paulo" teve o celular invadido e passou a receber centenas de mensagens, muitas delas com ameaças pessoais, e ao jornal foram enviadas mais de 220 mil mensagens de cerca de 50 mil contas da rede social.

Diante de denúncias, o Facebook removeu nesta semana 68 páginas e 43 contas da rede social que replicavam postagens favoráveis ao presidenciável. Dias antes, o WhatsApp anunciou que centenas de milhares de contas foram banidas por uso irregular. Até Flávio Bolsonaro teve a conta suspensa temporariamente, sob acusação de disseminar mensagens não solicitadas.

A tentativa de controle sobre o que é divulgado sobre a campanha foi reforçada depois do primeiro turno. Bolsonaro manteve a proibição dos integrantes da campanha de se pronunciarem, sobretudo sobre propostas de governo. O vice na chapa, general Hamilton Mourão (PRTB), continuou escanteado, depois de declarações polêmicas no primeiro turno, como as críticas a direitos como o 13º salário. O economista Paulo Guedes tem se pronunciado apenas por interlocutores, após a repreensão por ter defendido um imposto nos moldes do CPMF.

As polêmicas, no entanto, continuaram, desta vez com Eduardo Bolsonaro, que criticou o Supremo. A estudantes, disse que para fechar a Corte basta um "soldado e um cabo". Na Câmara, afirmou que se o próximo presidente tomar medidas consideradas inconstitucionais pelo STF, "a gente não vai se dobrar". As declarações, de julho, mas ganharam as redes sociais a poucos dias do segundo turno e geraram um conflito com o Judiciário.

Os percalços políticos se intensificaram na montagem de um eventual governo. Dos 15 ministros previstos, foram anunciados apenas três. Além da indicação de Onyx para a Casa Civil, está definido Paulo Guedes na Fazenda e o general Augusto Heleno na Defesa. Sob pressão de empresários, recuou das promessas de fundir o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços com a Fazenda e deve rever a fusão do Meio Ambiente com Agricultura.

O clima de "já ganhou" começou a esfriar às vésperas do segundo turno. Com a rejeição subindo e as intenções de voto caindo, Bolsonaro passou a cobrar publicamente seus correligionários. Com 56% dos votos válidos ante 44% de Haddad, o presidenciável do PSL viu sua vantagem cair seis pontos em uma semana. "Do nosso pessoal eu quero é mais empenho do que eles estão mostrando", disse ontem.

_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Haddad ganha fôlego, mas tempo é curto

Andrea Jubé

Malu Delgado 

26/10/2018

 

 

Até a meia noite de sábado estarei nas ruas, alertando o povo brasileiro sobre quem é esse senhor", tuitou Fernando Haddad (PT), minutos depois de a pesquisa do instituto Datafolha mostrar uma redução significativa da distância que o separava do líder da disputa, Jair Bolsonaro (PSL). O petista e seus aliados sentiram, pela primeira vez no segundo turno da disputa presidencial, que a "bolha" de Bolsonaro, enfim, parecia ter algum furo.

Os mais pragmáticos comemoram a mudança no cenário, mas consideram o tempo curto demais para reverter a vantagem até então inabalável do deputado federal e capitão reformado do Exército, cujo discurso autoritário mexeu com os brios das instituições, em especial o Poder Judiciário, e acendeu o sinal de alerta de políticos democratas.

Até o último dia oficial de campanha, Haddad manteve as esperanças num apoio de Ciro Gomes, o candidato do PDT que terminou o primeiro turno em terceiro lugar, com 13 milhões de votos. "Até minha mulher já está com ciúme, de tanto aceno que eu faço ao Ciro", brincou o petista, ontem, ao participar dos últimos atos de campanha no Nordeste, no Recife.

O PT aposta todas as fichas num "grand finale", com um vídeo de Ciro Gomes, que possa circular nas redes sociais e comover indecisos e até mesmo antipetistas convictos.

Nesta última semana da disputa eleitoral, quando sua rejeição começou a cair e os trackings do PT mostraram uma recuperação de Haddad no Rio Grande do Sul, no Rio, e na capital paulista, a coordenação de campanha do petista passou a acreditar na chance de uma virada.

Os petistas compararam o momento à "onda" que impulsionou a vantagem de Bolsonaro nos três últimos dias do primeiro turno. O ex-ministro e ex-governador Jaques Wagner, chamado a coordenar a campanha de Haddad no segundo turno, atribui essa onda à conscientização dos eleitores: "É um troglodita versus um democrata, o cheiro do perigo iminente, a consciência da ameaça do que ele representa e o medo crescente dele e de seus trogloditas", resumiu o baiano.

Haddad disse que o risco da vitória de Bolsonaro passou a ficar tão evidente que "patriotas se viram obrigados a deixar claro o voto pela democracia".

A oscilação nas pesquisas favorável a Haddad, tardia, talvez reflita mais os erros do campo adversário do que os acertos da campanha petista. Foi o discurso de Bolsonaro na avenida Paulista, quando falou em "banir" e "prender" seus opositores, e um vídeo de julho de uma palestra do deputado Eduardo Bolsonaro, para quem bastavam "um cabo e um soldado" para fechar o Supremo Tribunal Federal, que movimentaram as peças do jogo.

O confronto direto com Bolsonaro e a exposição de ideias e declarações violentas e autoritárias do político, dadas ao longo dos 28 anos de sua carreira parlamentar, foram cruciais para desconstruir a imagem do capitão do Exército, na opinião do PT. A mudança do tom da campanha no segundo turno, que investiu na vinculação da imagem de Bolsonaro à ditadura militar, relembrando que em seu voto no processo do impeachment ele fez apologia à tortura ao homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, é vista como um dos grandes acertos da campanha.

Mas as trombadas e erros do PT não foram poucos, passando por divergências de estratégias sobre a ampliação de apoios além do partido, falta de autonomia de Haddad para agir, definições sobre como mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na campanha e, por fim, falta de um comando único na comunicação, sobretudo nas redes sociais.

Os petistas atribuem a velocidade de crescimento de Bolsonaro às vésperas do primeiro turno à avalanche de fake news, principalmente vinculando Haddad ao falso kit gay, o que circulou fortemente entre eleitores evangélicos. A ofensiva montada pelo PT nas redes sociais, no segundo turno, e a revelação, pelo jornal "Folha de S.Paulo", de que empresários teriam comprado pacotes milionários de disparos de notícias falsas para prejudicar o candidato do PT, foram responsáveis pela grande inflexão na onda favorável a Bolsonaro, avaliam os petistas.

Nas três semanas do segundo turno, petista acumulou frustrações ao tentar formar uma frente democrática

Ao longo da campanha, a cúpula ouviu reclamações da falha de comunicação, em todos os sentidos: falta de comando e de uma linha clara de comunicação, falta de sintonia da equipe e, por fim, incapacidade de ouvir a voz do eleitorado. A senha chegou tarde, a partir das críticas do rapper Mano Brown em um ato pró-Haddad na Lapa, no Rio de Janeiro, na terça-feira: "A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo".

Ao entrar para a coordenação da campanha, Jaques Wagner pediu um "cavalo de pau" nas redes sociais. Trouxe consigo profissionais da Bahia para trabalharem na internet. De largada, a equipe criou mais de 100 grupos do aplicativo de troca de mensagens instantâneas - um número ínfimo se comparado à rede do adversário, com mais de 2 mil grupos de disseminação de conteúdos. Em outra frente, Wagner aconselhou Haddad a redobrar o número de entrevistas para rádios e emissoras de televisão.

Nas três semanas do segundo turno, Haddad acumulou frustrações ao tentar formar uma frente democrática em torno de sua candidatura. O golpe mais duro veio dos irmãos Gomes.

Por algumas horas no dia 7 de outubro, o candidato e petistas tiveram dúvidas se chegariam ao segundo turno. Uma onda de baixo astral abateu militantes que aguardavam as apurações no hall de um hotel no bairro do Paraíso, em São Paulo. Terminada a agonia, e com um capital de 31 milhões de votos (29,28% do votos válidos), Haddad percebeu o tamanho do desafio logo na noite daquele domingo, quando escutou, do outro lado da linha, a fala fria e descompromissada de Ciro. A conversa foi ruim. Seco, ele avisou que viajaria para a Europa e disse para Haddad aguardar a decisão do PDT. A decisão veio três dias depois, e não passou de apoio crítico a Haddad.

Ciro abandonou o barco logo na largada, mas Haddad passou as duas semanas seguintes insistindo na formação da frente ampla democrática para tentar reverter a vantagem de 17.934.985 de votos de Bolsonaro.

Mas o maior dano à campanha veio de outro Gomes, Cid, eleito senador. No ato de largada da campanha do segundo turno no Ceará, Cid Gomes, ao discursar, disse que o PT iria perder feio porque alguns de seus integrantes se acham donos da verdade.

Cid responsabilizou o PT pelo surgimento de Bolsonaro, voltou a cobrar autocrítica da sigla. Bolsonaro usou a fala de Cid no programa eleitoral e o fato foi classificado de "tragédia" na campanha. Um dia depois do vídeo, Jaques Wagner jogou por terra a tese da frente ampla e disse que as conversas eram com pessoas, não com partidos políticos.

"Ninguém quis se colar à derrota. Todos se preservaram para uma eventual oposição a Bolsonaro", definiu um petista. Com uma vantagem grande nas pesquisas e um voto consolidado, os adversários de Bolsonaro não viram razões políticas objetivas para declarar voto explícito ao PT.

Haddad diz que fez o que estava ao seu alcance para angariar apoios para fora do PT. Amigos e aliados, porém, fizeram chegar a ele várias mensagens de que timing, em política, é fundamental, e que o tempo passava depressa, enquanto ele jogava parado. Integrantes do PT, por sua vez, argumentavam que era inadmissível estender o tapete vermelho ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e que, se fosse de fato um democrata, o tucano faria declaração de apoio a Haddad naturalmente.

O contato direto com FHC só foi feito no dia 22 de outubro, na última semana da eleição. A razão da conversa foi a declaração do filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, sobre a possibilidade de fechar o STF. Para FHC, as falas de Bolsonaro e de seu filho cheiravam a fascismo. Também foi no mesmo dia que Haddad decidiu telefonar para o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a despeito de ter citado o tucano inúmeras vezes.

Do ninho tucano, poucos apoios concretos surgiram. Alguns bastante simbólicos, como o do ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. "Só o Bolsonaro para me fazer votar no PT", disse, em ato com mais de 1,5 mil juristas, de apoio a Haddad. Marina Silva (Rede) declarou apoio ao petista também na reta final.

O candidato petista deu, de fato, alguns passos ousados - e não sem discordância interna -, como a visita ao ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, responsável por conduzir o julgamento da ação penal 470, o esquema do mensalão, que desestabilizou o primeiro governo Lula e levou petistas de grande porte à prisão.

A ideia de procurar Barbosa obviamente não partiu do PT, mas o plano de Haddad de ampliar os apoios à candidatura dele no segundo turno estava alinhado com a visão de petistas como Jaques Wagner.

Logo na largada, tanto o candidato quanto Wagner falaram na construção de uma ampla frente democrática, uma estratégia para deter a altíssima rejeição ao PT flagrante em muitos segmentos da sociedade. "Lula é a ideia que inspirou este plano de governo e Fernando Haddad é o nome escolhido para liderar uma ampla frente democrática, capaz de tirar o Brasil dessa encruzilhada histórica", diz a segunda versão do plano de governo registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na primeira versão, o espírito era outro: é a liderança de Lula que se traduz hoje "em uma ampla frente política e social, capaz de tirar o Brasil da encruzilhada histórica em que nos encontramos".

O processo de descolamento da imagem de Lula de Haddad foi outro parto da campanha. A visita ao ex-presidente na carceragem de Curitiba no dia 8 de outubro, um dia após o primeiro turno, foi considerada um erro crasso. Bolsonaro passou a campanha inteira chamando Haddad de "pau mandado de bandido". Logo na primeira semana da campanha, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que Lula havia pedido a Haddad para não visitá-lo mais, pois ele precisava ir para as ruas.

Haddad passou a primeira semana inteira do segundo turno trancado em um hotel. Era visível a dificuldade do PT em traçar uma estratégia e criar um fato político forte favorável ao candidato. A novidade do segundo turno passou a ser uma reunião diária do núcleo duro da coordenação política, composto por Wagner, Gleisi Hoffmann, o ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli e o deputado estadual Emídio de Souza. Na última semana da campanha, o ex-presidente do PT Rui Falcão foi convidado a integrar o grupo.

O candidato incluiu no grupo seu filho mais velho, Frederico, e a mulher, Ana Estela. Ao longo d campanha, a família foi o porto seguro de Haddad. Fred, seu filho, era sempre consultado depois de qualquer entrevista. "E aí? Fui bem?", costumava perguntar o petista. Ana Estela, também filiada ao PT, exerceu um papel moderador, contendo irritações de Haddad com o próprio partido e surtos de ansiedade.

Entre os petistas da coordenação, Gleisi e Falcão eram os que mais defendiam a volta de Lula na campanha. O raciocínio de parte do PT é que Haddad não conseguiria buscar o voto do centro e nem da classe média, devido à raiva arraigada contra o PT. Era preciso segurar os votos do eleitor de baixa renda, fazendo promessas concretas, em especial de geração de emprego.

Os apoios não vinham, a rejeição aumentava, Bolsonaro penetrava no Nordeste. Foi aí que, também na reta final da campanha, Haddad cedeu aos apelos de petistas para dar sinais concretos ao povo. O professor Haddad passou dois dias fazendo contas antes de anunciar o botijão de gás a R$ 49 e a promessa de reajustar em 20% os benefícios do Bolsa Família.