Título: Aumentam os casos de mutilações em barcos
Autor: Castro, Grasielle
Fonte: Correio Braziliense, 18/08/2012, Brasil, p. 12
O aumento no número de vítimas no Pará de escalpelamento — quando o couro cabeludo é arrancado bruscamente de forma acidental — forçou um mutirão de médicos enviados ao estado para reparação do rosto e tratamento psicológico dessas pessoas. Apenas nos primeiros oito meses deste ano, a quantidade de acidentes superou a registrada durante o ano passado. Foram nove casos, diante de oito em 2011 e em 2010. Apesar de existir uma lei que obriga os donos de embarcações a cobrirem o eixo do motor e de a Marinha brasileira oferecer esse serviço gratuitamente, a Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia (AMRVE) reclama da falta de capilaridade do sistema de precaução vigente, que não atinge todos os ribeirinhos da região, e de outras políticas preventivas.
Sem fiscalização, os problemas se agravaram nos últimos meses. Os dois últimos acidentes ocorreram entre julho e agosto, uma senhora de 51 anos e uma criança de 9 estavam em um barco pequeno, sem a proteção, quando tiveram o couro cabeludo arrancado. De acordo com a presidente da associação, Rosinete Serrão, são pessoas que, assim como ela, tiveram seus sonhos ceifados no momento de uma brutalidade inesperada. Em 1997, ela voltava da casa do tio, e, ao tirar a água que entrava no barco, escorregou e o cabelo se enrolou. "Foi muito rápido. Depois tive de passar por várias cirurgias. O tratamento é longo e dolorido. Só esperando no hospital para fazer o enxerto, que tira pele da coxa e põe na cabeça, são uns três meses até cicatrizar." Ao sair da unidade de saúde, Rosinete entrou em choque. "Quando vi as pessoas na rua, foi um choque muito grande porque eu não me aceitava. Todo mundo me olhava, eu era diferente. Foi um ano e meio em depressão."
Sensibilizada por histórias semelhantes de mulheres que até abrem mão de tarefas diárias por vergonha da nova aparência, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) finaliza hoje em Macapá (AP), cidade para onde as vítimas geralmente são encaminhadas, o mutirão de reconstrução capilar em 47 pacientes. Coordenador do grupo de 40 cirurgiões e quatro anestesistas, o vice-presidente da SBCP, Luciano Chaves, destaca que o choque do acidente é imensurável. "Além de trazer uma grande sequela física, o escalpelamento traz um forte impacto na vida afetiva e social. É um sofrimento que tira a pessoa da sua rota de planejamento da vida. É um desajuste familiar total."
O cirurgião destaca que, apesar de existirem leis e campanhas relacionadas ao tema, acidentes não diminuem. "Não é novidade, existem orientações preventivas, mas falta empenho do Executivo, porque nós operamos e a fila de mais de 300 pacientes continua a crescer", analisa. Ele lembra que essa é uma situação ímpar, que só ocorre no Brasil, e pode atingir em fração de segundos todos que têm cabelo grande, inclusive homens, que andam em pequenas embarcações onde os motores com mil rotações por minutos são adaptados no eixo do equipamento para aumentar a velocidade.
Informação A presidente da AMRVE, Rosinete Serrão, acredita que as vítimas são resultado da carência de informação na população ribeirinha. "Eles moram em áreas de difícil acesso, sem suporte para trabalhar em campanhas preventivas", argumenta. Rosinete reconhece que a Marinha tem se esforçado para difundir os perigos do eixo descoberto por meio de spots em rádio, mas critica que as ações não chegam a todos. "O que falta mesmo é uma campanha na tevê, por meio de parabólica, que possa passar à noite, hora em que as pessoas se reúnem nas vilas para assistir à programação noturna", sugere.
Falta de conhecimento não é a única justificativa para os escalpelamentos, na visão da coordenadora de Educação, Saúde e Mobilidade Social da Secretaria de Saúde do estado, Socorro Silva. "Existe uma cultura forte de pessoas que acham que nunca vai acontecer com elas", afirma. Apesar de defender a crença como principal motivo, Socorro reconhece que as informações não chegam a todos. "Temos tentado fazer uma cobertura ampla, mas existem regiões em que o acesso é 90% com barco e cada rio tem uma dezena de igarapés que se multiplicam", argumenta. Ao Correio, a Marinha afirmou que tem feito campanhas ostensivas por rádio, meio de comunicação mais usado na região.
Denúncias A coordenadora aponta ainda o crescimento econômico do país como outra razão para o crescente número de casos. Em algumas regiões, o único meio de transporte viável é o barco e, segundo ela, a primeira coisa que os ribeirinhos fazem quando conseguem algum dinheiro é comprar um. "São pequenos, carregam a família e ainda servem como fonte de renda, pois transportam vizinhos e mercadorias", explica. A proximidade também é a principal barreira da punição em relação o descumprimento da lei que obriga os barcos a colocarem proteção. "Como os acidentes geralmente ocorrem na embarcação da família, a vítima não vai à delegacia denunciar o pai. Essa é uma discussão que precisamos avançar."