O globo, n. 31301, 19/04/2019. País, p. 4

 

O recuo de Moraes

Jailton de Carvalho

19/04/2019

 

 

Criticado por três colegas do STF, ministro revoga censura a reportagem sobre Dias Toffoli

Depois de uma série de reações dentro do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes recuou ontem e revogou a própria decisão que havia censurado uma reportagem da revista “Crusoé” que citava o presidente da Corte, Dias Toffoli. Nas horas anteriores ao novo despacho, liberando a publicação da matéria, o ministro sofreu reprimendas públicas de três colegas: Celso de Mello, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello.

Além de expor a divergência no Supremo, as críticas prevaleceram sobre a posição de Dias Toffoli, que ainda ontem defendia a primeira decisão de Moraes.

A censura à reportagem foi determinada por Moraes dentro do inquérito aberto por Toffoli para investigar ofensas e calúnias contra o Supremo. Nos últimos dias, a ordem de Moraes vinha sofrendo críticas de entidades ligadas à defesa de direitos fundamentais e de parlamentares. Ontem, Celso de Mello e Cármen Lúcia se somaram a Marco Aurélio Mello na condenação à decisão.

Decano do tribunal, Celso de Mello divulgou um texto em que, sem citar o caso específico, classifica a censura de “prática ilegítima e intolerável”. A mensagem ressalta que, no Estado Democrático de Direito, “não há lugar possível para o exercício do poder estatal de veto (...) à transmissão de informações e ao livre desempenho da atividade jornalística”. O texto afirma que a censura “constitui verdadeira perversão da ética do Direito”.

“O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade de manifestação do pensamento ou de restringir o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos de interesse público, ainda que do relato possa resultar a exposição de altas figuras da República”, escreveu.

Reservadamente, outros ministros contrários à censura afirmaram que não se manifestariam, porque caberia ao decano falar pelo grupo. Ao GLOBO, a ministra Cármen Lúcia endossou o posicionamento de Celso de Mello:

— Concordo com o que ele (Celso de Mello) falou. Como sempre falei, toda censura é mordaça, e toda mordaça é incompatível com a democracia. Foi muito bom o decano ter falado. Ele tem um compromisso enorme com estes princípios (liberdade de expressão e de imprensa).

Toffoli defendeu proibição

A reportagem citava um esclarecimento prestado por Marcelo Odebrecht à Polícia Federal (PF) sobre um e-mail enviado em 2007 a outros executivos da empreiteira. Nele, o empresário se refere ao apelido de “amigo do amigo de meu pai”. À PF, Odebrecht disse que a pessoa em questão era Toffoli, à época advogado-geral da União. Não há menção a pagamento de propina nas mensagens.

A revista “Crusoé” revelou o esclarecimento de Odebrecht e afirmou que o documento havia sido enviado para a PGR, o que posteriormente foi negado em nota pela Procuradoria. Moraes usou a negativa como prova de que o e-mail não existia, e ordenou a censura sob argumento de que era “fake news”. Depois da publicação da reportagem, o MPF no Paraná pediu que o documento fosse remetido para a PGR, o que foi autorizado pela Justiça. Ontem, o ministro também recebeu o material.

Para justificar a nova decisão, Moraes argumentou que recebeu, via Sedex, um documento citado na reportagem e, desta forma, pôde comprovar que ele existia.

“A existência desses fatos supervenientes — envio do documento à PGR e integralidade dos autos ao STF — torna, porém, desnecessária a manutenção da medida determinada cautelarmente”, escreveu Moraes.

Antes das críticas públicas dos colegas e do recuo de Moras, o presidente do STF, Dias Toffoli, manteve-se a favor da decisão inicial de censura. Em entrevista ao jornal “Valor”, publicada ontem, Toffoli afirmou:

— Se você publica matéria chamando alguém de criminoso, acusando de ter participado de um esquema, e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim. — disse Toffoli. — É necessário mostrar autoridade e limites. Não há que se falar em censura neste caso.

À “Rádio Gaúcha”, o ministro Marco Aurélio Mello havia chamado de “mordaça” a decisão contra a revista. Ao GLOBO, o ministro avaliou que o inquérito aberto por Toffoli tem trazido “desgaste intitucional” ao Supremo, e criticou o episódio de censura:

— Evidentemente, implica censura, e ainda por cima com um elemento complicador, porque a notícia dizia respeito ao presidente do STF.

A Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) consideraram que ficou restabelecido “o princípio maior da liberdade de imprensa”. A revista “Crusoé” afirmou que “foi uma importante vitória da liberdade de imprensa e de expressão”.

Em outra decisão publicada ontem, Toffoli suspendeu a decisão que impedia o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva de dar entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”.

“A prática da censura, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito”

Celso de Mello, ministro do STF

“Toda censura é mordaça, e toda mordaça é incompatível com a democracia”

Cármen Lúcia, ministra do STF

“A existência desses fatos supervenientes torna desnecessária a manutenção da medida”

Alexandre de Moraes, ministro do STF

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Corte segue diante de encruzilhada

Jailton de Carvalho

19/04/2019

 

 

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de rever a censura imposta à revista eletrônica “Crusoé” e ao site “O Antagonista”, por causa da reportagem relacionada ao presidente da Corte, Dias Toffoli, não deve encerrar a tensão nos bastidores do tribunal.

Em conversas reservadas, diferentes ministros da Corte seguem inconformados com a existência do inquérito aberto por ordem de Toffoli para investigar ataques contra o Supremo. Ministros questionam o fato de a Corte ter atribuído a si o papel conferido à Polícia Federal e ao Ministério Público. O procedimento teve sua legitimidade questionada por sete ações, depois de ter sido usado para alvejar usuários de redes sociais e jornalistas.

Nos bastidores da Corte, torna-se cada vez mais rarefeito o apoio à iniciativa de Toffoli, tomada sem qualquer conversa com os demais integrantes do tribunal. As críticas disparadas ontem por Marco Aurélio Mello, Cármen Lúcia e, em especial, pelo decano Celso de Mello mostram que o clima de constrangimento deverá perdurar.

O relator dos questionamentos, ministro Edson Fachin, deu cinco dias para que o relator do inquérito, Alexandre de Moraes, esclareça as medidas adotadas no procedimento. Superada essa etapa, o Supremo estará numa encruzilhada.

Se Fachin considerar irregulares os atos adotados no inquérito, poderá ordenar seu arquivamento, como defendido pela Procuradoria-Geral da República (PGR) nesta semana, agravando a tensão ao desautorizar Moraes e Toffoli, que defendem o inquérito.

Se preferir não melindrar Moraes, Fachin poderá levar o caso a julgamento do plenário. Neste caso, o calvário será ainda maior, porque as divisões e embates entre os magistrados serão expostos em rede nacional pelo julgamento televisionado do plenário.

E, para tornar a situação ainda mais delicada, qualquer alternativa escolhida estará antes subordinada ao próprio presidente da Corte. Se quiser, Toffoli poderá evitar o arquivamento monocrático, caso Fachin decida sozinho suspendê-lo. E também poderá evitar que o caso seja analisado em plenário, direcionando a pauta da Corte para outros temas.

No STF, a avaliação é que o encerramento do inquérito é melhor caminho para reduzir a temperatura na Corte. Nesta semana, porém, Toffoli ordenou a renovação do inquérito por 90 dias, em meio ao avanço do desgaste provocado pela investigação.