O globo, n. 312620, 09/03/2019. País, p. 6

 

Corrida pelo privilégio diplomático

Bruno Góes

Eduardo Bresciani

09/03/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Câmara concede passaportes especiais aos parentes de deputados; prática é irregular

Com pouco mais de um mês de trabalho, a Câmara, formada por um número inédito de deputados estreantes, eleitos com o discurso a favor de novas práticas na política, registra uma corrida por antigos privilégios. Nas últimas semanas, a Casa já concedeu, a pedido de parlamentares, 155 passaportes diplomáticos a deputados e seus familiares. Os documentos foram destinados a 78 representantes eleitos e, em uma violação das regras do governo, a 77 filhos e cônjuges dos congressistas. Além de um decreto de 2006, uma portaria do Itamaraty de 2011 regula a emissão do documento. A regra diz que a concessão e a utilização do passaporte especial para parentes “estará vinculada à missão oficial do titular e, portanto, terá validade pelo prazo da missão”.

Se um deputado passar 15 dias em visita oficial a algum país, é esse o período de validade do passaporte de seus familiares. Na prática, porém, a regra é ignorada, com documentos expedidos por até quatro anos de validade. E nem todos os requerentes utilizam o passaporte para compromissos oficiais. Os passaportes diplomáticos oferecem privilégios a quem viaja ao exterior, como a dispensa de filas e visto para alguns países e tratamento menos rigoroso de autoridades. Enquanto o cidadão comum precisa arcar com o custo da emissão do documento de R$ 257,25, o passaporte diplomático sai de graça para autoridades, seus filhos e cônjuges. Incluindo na conta os passaportes que ainda possuem validade e foram emitidos em anos anteriores, são 917 documentos na mão de deputados, ex-parlamentares e seus filhos e cônjuges.

A segunda secretaria da Câmara é responsável por pedir ao Itamaraty os passaportes solicitados pelos parlamentares. De acordo com o segundo secretário Mário Heringuer (PDT-MG), o direito de deputados e parentes para obter o documento é irrestrito. Ele diz desconhecer a regra de que parentes precisam estar em missão oficial para utilizar o documento.

— Esta é uma notícia que você está me dando. O que eu sempre soube é que os parlamentares e os filhos sempre puderam usar para qualquer situação, inclusive férias. Eu tenho um filho, por exemplo, que usou. Eu cheguei na segunda secretaria há duas semanas, vou verificar direitinho isso aí — diz o parlamentar.

Em nota, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse ao GLOBO que a emissão do passaporte diplomático “é um direito de todo parlamentar, assim como de seu cônjuge e filhos”. Ele acrescentou que “fazer essa solicitação ao Itamaraty é uma decisão administrativa da Câmara a fim de que todos os parlamentares disponham do documento adequado para quando precisarem viajar oficialmente”.

Desde 2014, Rodrigo Maia, além de ter o próprio passaporte, requereu o documento para os cinco filhos. Maia já viajou sete vezes ao exterior em missão oficial. Neste ano, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, renovou o documento. Em 2014, pediu dois passaportes a dependentes, que ainda não tiveram a validade expirada. Desde 2014, Onyx só esteve em missão oficial no exterior apenas uma vez, em 2018. No fim de fevereiro daquele ano, acompanhou o então pré-candidato Jair Bolsonaro ao Japão.

O campeão de pedidos

Ministro do Turismo e reeleito deputado federal, Marcelo Álvaro Antônio pediu, em 2015, o próprio passaporte e mais quatro documentos para dependentes. No site da Câmara, entretanto, não há registros de missões oficiais ao exterior feitas pelo parlamentar. Segundo assessoria do ministro, “não houve nenhuma viagem ao exterior feita pelo então deputado federal ou qualquer familiar e as solicitações foram feitas pelo gabinete parlamentar com base na legislação vigente à época”. Osmar Terra, ministro da Cidadania, teve o passaporte renovado em 2018. Em 2015, conseguiu um documento para a mulher. Neste ano, o campeão em solicitação de passaportes diplomáticos é o deputado Celso Sabino (PSDB-PA): seis documentos. Em seguida, com cinco solicitações cada, estão Arthur Lira (PP-AL), Gelson Azevedo (PHS-RJ) e Odair Cunha (PT-MG). Nenhum deles registra missão oficial, segundo os dados da Câmara. De acordo com a assessoria de Odair Cunha, a requisição e o uso dos passaportes seguiram a legislação. Sobre não haver registro de missão diplomática realizada pelo deputado, na legislatura anterior, afirma que isso se dá pelo fato de o parlamentar ter se licenciado do mandato para assumir a secretaria de Estado em Minas Gerais. O GLOBO entrou em contato com as assessorias dos ministros Onyx Lorenzoni e Osmar Terra, mas não houve resposta. Os deputados Celso Sabino (PSDB-PA), Arthur Lira (PP-AL) e Gelson Azevedo (PHS-RJ) também foram procurados e não responderam.

Itamaraty: restrição existe

Autora de um projeto para dispensar o pronome de tratamento “Vossa Excelência” para autoridades, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) recebeu seu passaporte diplomático na semana passada. E contou que já solicitou um passaporte diplomático também para seu filho. —Não é algo que vai trazer benesse para eu viajar pelo mundo. É algo que faz parte da função do cargo de deputada, porque uma das funções é fazer relações exteriores. Esse passaporte nada mais é que um documento que ajuda a facilitar o visto em alguns países. Eu não tenho visto para os Estados Unidos, por exemplo. Já fui convidada e não pude ir — justifica Zambelli, que defende a concessão de passaporte para o filho:

— Vejo meu filho muito pouco. No mês passado só o vi doisdias.Emalgumasviagens eu vou levá-lo, onde der para conciliar a agenda —disse. Questionado sobre a validade da portaria, de 2011, que restringe a concessão do documento para familiares de parlamentares, o Itamaraty confirmou que a regra continua valendo.

“Esta é uma notícia que você está me dando. O que eu sempre soube é que os parlamentares e os filhos sempre puderam usar para qualquer situação, inclusive férias”

Mário Heringuer (PDT-MG), Segundo-secretário da Câmara, ao ser questionado sobre a regra que limita a concessão de passaporte para familiares

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Justiça já cassou documentos irregulares 

09/03/2019

 

 

A concessão indiscriminada de passaportes diplomáticos a parentes de políticos já gerou polêmicas e provocou a cassação de documentos por ordem do Judiciário nos últimos anos. Em 2011, após o Ministério Público pedir uma lista de beneficiários, seis parentes do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva devolveram voluntariamente o passaporte. Em 2013, a Justiça Federal no Distrito Federal mandou o Ministério das Relações Exteriores anular o documento concedido a Luís Cláudio Lula da Silva, filho de Lula e o único que ainda não havia entregado o documento. Na decisão, o juiz Jamil Oliveira afirmou que o Itamaraty, ao conceder o passaporte, atuava “em absoluta confusão de interesses públicos com interesses pessoais”. Em 2016, o Itamaraty renovou o passaporte diplomático do pastor Samuel Cássio Ferreira, investigado na Operação Lava-Jato, e de sua mulher, Keila Campos Ferreira, mesmo com pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) contrários à concessão.

No mesmo ano, após a judicialização do caso, sob o argumento de que o Brasil é um Estado laico, o Itamaraty decidiu suspender a concessão dos passaportes a líderes religiosos.

Por “interesse do país”, o Itamaraty também concedeu no governo Dilma Rousseff a ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal de Contas da União (TCU), mesmo com boa parte dessas ex-autoridades atuando na advocacia e consultoria privadas. Segundo o decreto 5.978, o passaporte diplomático pode ser concedido ao presidente da República, ao vice-presidente e aos expresidentes da República. O documento também é fornecido a ministros de Estado, governadores, diplomatas, correios diplomáticos, adidos, militares a serviço de organismos internacionais e aos chefes de missões diplomáticas. Estão ainda na lista favorecidos deputados federais, senadores, ministros do Supremo Tribunal Federal e tribunais superiores, procurador-geral da República e subprocuradores-gerais, além de juízes brasileiros em Tribunais Internacionais Judiciais ou Tribunais Internacionais Arbitrais. As concessões a parentes de autoridades são reguladas por portaria do Itamaraty. Entre os critérios para a emissão do documento está a demonstração de que o “requerente está desempenhando ou deverá desempenhar missão ou atividade continuada de especial interesse do país”.