Título: Mensalito em julgamento
Autor: Luna, Thais De
Fonte: Correio Braziliense, 15/08/2012, Mundo, p. 18

Ex-presidente Fernando de la Rúa pode pegar 10 anos de prisão pelo suborno de senadores para aprovar uma reforma trabalhista, há 12 anos, em esquema que lembra o mensalão do governo Lula

A Argentina começou ontem a repassar um episódio marcante de sua história política recente com o julgamento do ex-presidente Fernando de la Rúa (1999-2001) e de mais seis acusados de pagar propina a senadores, em 2000, para a aprovação de uma reforma das leis trabalhistas, exigida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Hoje com 74 anos e praticamente esquecido como líder político, o ex-mandatário sentou-se na primeira fila do banco dos réus no Tribunal Oral Federal nº 3, de Buenos Aires. O escândalo, com o pagamento de um total de cinco milhões de pesos em subornos, tem sido comparado ao mensalão brasileiro e foi classificado como "o caso de corrupção institucional mais grave desde o retorno à democracia (em 1983)" por Mario Pontaquarto, que entregou o dinheiro aos políticos e foi o delator do esquema. De la Rúa aparentava calma, embora possa ser condenado a 10 anos de prisão por "corrupção ativa agravada e desvio de fundos públicos".

Na abertura da audiência, o juiz Federico Delgado reconstituiu a maneira como os cinco milhões de pesos saíram dos cofres da Secretaria de Inteligência (Side) para as mãos de vários senadores — na maioria, da oposição peronista. "O objetivo era facilitar a sanção da reforma trabalhista, que era "existencial" para o governo. Mas os legisladores pediram outras coisas para apoiar a lei, ou seja, dinheiro", descreveu Delgado. O então presidente teria dado aval para o pagamento da propina. "Posso garantir que nenhum conhecimento ou participação pode ser atribuído a mim. Mas, examinando o caso, os subornos não existiram", foi a alegação do ex-presidente. De la Rúa é o segundo ex-chefe de Estado que vai ao banco dos réus na Argentina. O primeiro foi seu antecessor imediato, Carlos Menem (1989-1999), absolvido em 2011 das acusações de contrabando de armas (para Croácia e Equador) e de ter acobertado um suposto autor do atentado à bomba contra uma associação judaica, em 1994.

De acordo com o juiz, o então ministro do Trabalho, Mario Alberto Flamarique, era o negociador político do governo. Ao chefe da Secretaria de Inteligência, Fernando de Santibañes, teria cabido a missão de fornecer o montante necessário para aprovar a reforma. O responsável pela entrega da propina foi o ex-funcionário do Senado Mario Pontaquarto, que denunciou o esquema. Pontaquarto reafirmou ontem a disposição de "confirmar todos os fatos". Antes de entrar no tribunal, ele disse à imprensa que poderia receber uma sentença grave pelo que fez. "Se não houver condenação para mim, não haverá para ninguém. Se isso acontecer, haverá impunidade", ressaltou. Cerca de 400 pessoas vão testemunhar no processo, que deve durar seis meses . Um dos citados é a presidente Cristina Kirchner, que na época era senadora pelo Partido Justicialista (peronista) e votou contra a reforma. De acordo com o professor de relações internacionais na Universidade de Brasília (UnB) Carlos Vidigal, diferentemente do mensalão brasileiro, o escândalo argentino não deve afetar o atual governo. "A importância da denúncia, na época, foi grande, a ponto de provocar a renúncia do vice-presidente, Carlos Alvarez. Com a demora, o processo perdeu a força", explicou. O escândalo foi o estopim da crise institucional, política e econômica a que levou De la Rúa à renúncia, em dezembro de 2001.

Mensalão

Para Alberto Pfeifer, membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP), não é possível comparar o escândalo argentino com o mensalão em termos do processo operacional, embora os casos se assemelhem em alguns aspectos. "O processo argentino envolve um ex-presidente hoje na oposição. No Brasil, refere-se a um antigo governo que segue na situação. Isso levanta certa suspeita, na Argentina, de que as instituições federais não são isentas. No mensalão brasileiro, não parece ter havido interferência política sobre o Supremo Tribunal Federal", comentou. Vidigal ressaltou que, se fosse para comparar escândalos, seria mais adequado associar o caso argentino com as denúncias de compra de votos de deputados brasileiros, em 1997, para aprovar a emenda constitucional que permitiu a reeleição de presidente, governadores e prefeitos.

Nas mãos da Justiça Quem são os principais protagonistas do escândalo da propina no Senado que estão em julgamento:

Os acusados

Fernando de la Rúa Ex-presidente da Argentina (1999-2001), é acusado de pagar suborno a senadores para que aprovassem uma reforma trabalhista em 2000. Também é processado por desvio de verbas públicas. Os dois crimes podem lhe custar uma pena de até 10 anos de prisão.

Mario Luis Pontaquarto Ex-secretário parlamentar, foi quem denunciou os crimes. Ele admitiu à Justiça ter carregado as malas com o dinheiro para pagar o suborno aos senadores. Pelo crime, foi condenado, em julgamento anterior, a dois anos e um mês de prisão.

Fernando Jorge de Santibañes Foi chefe de Inteligência do governo de De la Rúa. Pontaquarto afirma que Santibañes entregou-lhe o dinheiro para pagar o suborno aos senadores, na sede dos serviços de inteligência.

Mario Alberto Flamarique Ex-ministro do Trabalho, teria dito — segundo uma testemunha — que a reforma trabalhista seria aprovada porque ele tinha um "cartão de débito" para os senadores peronistas (de oposição).

Alberto Máximo Tell, Augusto José María Alasino, Remo José Constanzo e Ricardo Alberto Branda Ex-senadores peronistas, teriam cobrado propina de De la Rúa e de Flamarique para aprovarem a reforma trabalhista.

Outros envolvidos

José Genoud Ex-senador da União Cívica Radical, partido de De la Rúa, havia cobrado propina para aprovar a reforma. Suicidou-se com dois tiros no peito em 25 de setembro de 2008.

Emilio Cantarero Ex-senador peronista, havia cobrado propina, mas não vai enfrentar o julgamento por ter mal de Alzheimer. Havia recebido 4 milhões de pesos para dividir com colegas de bancada.

Memória

Dois anos caóticos

Fernando de la Rúa elegeu-se presidente da Argentina, em outu-bro de 1999, usando a seu favor o deboche feito pelo antecessor e adversário Carlos Menem, que o classificou como "um chato". O sucesso dos filmes de campanha — em que o candidato admitia: "sei que sou chato" — não sobreviveu aos primeiros meses de um governo que herdou a economia em recessão.

A primeira grande crise veio um ano depois da eleição, com a renúncia do vice, Carlos Álvarez, ex-sindicalista de uma nova le-genda de esquerda, coligada à União Cívica Radical (UCR), de De la Rúa. Chacho Álvarez saiu em protesto contra o escândalo que está sendo julgado agora.

O tiro de misericórdia veio com a crise econômica em múltiplas frentes: endividamento externo, redução de salários do funciona-lismo e fuga abrupta de capitais. Em dezembro de 2001, o governo impôs uma retenção parcial de depósitos bancários, o "corralito". Protestos violentos irromperam nos subúrbios de Buenos Aires e outras cidades. No dia 21, com um saldo de 23 manifestantes mortos, De la Rúa renunciou e deixou a Casa Rosada de helicóptero.

Clarín recupera tevê

Depois de uma série de protestos de funcionários da empresa Cablevisón, braço do grupo Clarín na televisão paga, a Câmara Civil e Comercial de Buenos Aires invalidou a ordem do juiz Walter Bento, de Mendoza, que determinou uma intervenção na diretoria da companhia. A decisão de interferir no comando da empresa atendia a um pedido do Grupo Vila-Manzano — que, segundo o jornal La Nación, desenvolve uma estratégia para assumir o controle da Cablevisión. O juiz de Mendoza, no entanto, precisaria do respaldo de um juiz federal para executar a ação. O caso se entrelaça com os atritos entre o grupo Clarín e a presidente Cristina Kirchner, acusada de tentar colocar a mídia sob controle do governo, tirando a emissora a cabo de empresários críticos de sua agenda política e favorecendo o grupo Vila-Manzano, tido como aliado do kirchnerismo.

Para o tribunal de apelações da câmara, a Justiça mendozina não teria competência para tratar o caso da Cablevisión, uma vez que o centro de operações da emissora não está naquela província. Por isso, o processo deveria tramitar na capital do país. Se a medida fosse ratificada, caracterizaria a segunda intervenção na empresa no intervalo de seis meses. A questão judicial foi iniciada em dezembro do ano passado, quando o Vila-Manzano apresentou uma denúncia de "abuso de posição dominante" após a Cablevisión fundir-se com o Multicanal. Nesse período, 50 policiais ocuparam os escritórios da emissora do Clarín para confiscar documentos.

No último fim de semana, o jornal Clarín publicou reportagens nas quais dizia que a Justiça havia autorizado uma nova intervenção na empresa. Diante dessa possibilidade, cerca de 600 funcionários passaram a segunda-feira em frente à sede da Cablevisión, em protesto contra a intervenção. "Havia um forte rumor de que fariam isso, igual ao ano passado. Então, nos mobilizamos, mas não aconteceu nada", descreveu um trabalhador ao Clarín. O jornal denunciou que o juiz de Mendoza, Walter Bento, seria "uma arma" do governo para sucatear a emissora e entregá-la ao Supercanal, concorrente da Cablevisión e propriedade do grupo Vila-Manzano.

A partir de 7 de dezembro próximo, a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) deve revogar as licenças concedidas ao Grupo Clarín que excedam a cota estabelecida pela nova lei de serviços audiovisuais e distribuí-las para empresas concorrentes. Para o La Nación, a iniciativa é uma instrução de Cristina para minar o poder do grupo midiático que lhe faz oposição.