O globo, n. 31255, 04/03/2019. Opinião, p. 2
Mesmo em crise, Argentina avança contra a corrupção
04/03/2019
A Argentina ainda não conseguiu se livrar da alta inflação, mas já começa a exumar a estrutura de corrupção que contaminou o ambiente de negócios do país, principalmente nos governos de Néstor e Cristina Kirchner. É previsível que esse temas predominem na eleição presidencial de outubro.
Há quatro décadas, a ditadura do general Jorge Rafael Videla deflagrou um processo de aumento exponencial dos gastos governamentais, fomentando a hiperinflação dos anos seguintes. Em 1990, o país em transe chegou a registrar aumento médio de preços de 1.344%, dez vezes mais que o recorde inflacionário brasileiro na época.
Desde então, os argentinos se empenham em debelar o incêndio nas contas nacionais. Nos momentos de relativo êxito, atenuaram o processo a um custo social altíssimo. Até agora, porém, não conseguiram reverter o desajuste estrutural nas contas públicas. E continuam a conviver com uma inflação elevada.
Os efeitos políticos e sociais são devastadores. No último triênio, os preços subiram em média 36%. Ano passado, aumentaram cerca de 50%, muito acima dos 32% do reajuste dos salários da elite dos assalariados. A inflação de 3% no mês de janeiro corresponde à taxa prevista para todo o ano no Chile, no Peru e na Colômbia e para os próximos oito meses no Brasil. O valor do dólar dobrou em relação ao peso nos últimos 12 meses.
Para superar os desequilíbrios do Estado argentino é necessário perseverança no rumo das reformas institucionais, com ampla desindexação da economia. Nada, porém, terá eficácia se a sociedade não se decidir a eliminar a inflação, pela reestruturação do Estado, e também a mudar o padrão secular de vícios nas relações entre os setores público e privado, que atrofiam a livre competição empresarial.
Um alento está no avanço das investigações sobre corrupção, parte delas em sintonia com a experiência brasileira na Lava-Jato. No exemplo mais recente, tem-se a confissão judicial do antigo tesoureiro da ex-presidente Cristina Kirchner sobre o súbito enriquecimento da família no poder, as benesses aos aliados políticos e as contrapartidas a empresas como Odebrecht. Uma construtora local, Panedile, acrescentou detalhes sobre pagamento de propinas de até 20% sobre o valor dos contratos governamentais.
Cristina Kirchner não oculta o desejo de se candidatar à Presidência em outubro. Na campanha, talvez, seja obrigada a explicar o legado de corrupção deixado pelo falecido marido e ampliado na sua gestão.
Terá como adversário o atual presidente, Mauricio Macri, que enfrenta dificuldades com a alta inflação e o aumento do desemprego. Há poucos dias, Macri visitava uma obra pública quando ouviu de um operário o apelo: “Por favor, presidente, faça alguma coisa, rápido, estamos na pior". Os argentinos insistem na reconstrução do país.