O globo, n. 31254, 03/03/2019. País, p. 11

 

A vez da Venezuela

Fernado Henrique Cardoso

03/03/2019

 

 

O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem leu o texto recente de Rubens Ricupero sobre a política externa do governo Bolsonaro perceberá os descaminhos nos quais poderemos enveredar. Diante dos ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-ideológico observadas desde Sarney até Michel Temer. Basta ler o livro “Um Diplomata a Serviço do Estado”, do embaixador Rubens Barbosa, para ver que se manteve certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo.

Historicamente a condução de nossa política externa obedeceu a linhas de continuidade, com raras exceções em períodos não democráticos. É ao Barão do Rio Branco que se atribui a noção de que deveríamos manter boas relações com os Estados Unidos para fazer o que nos convém na área que nos toca mais de perto, a América do Sul. Na guerra contra o nazismo até bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no Brasil. Mas foi um momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em regra, nunca houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos. Mesmo na Guerra Fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista, buscamos manter certa autonomia.

Com a globalização muita coisa mudou no ambiente político e, sobretudo, na interconexão econômica dos países. A diplomacia brasileira, porém, não deixou de se orientar pelo interesse nacional. Em artigo recente publicado neste espaço disse que o atual governo abusa da inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse “abuso da inconsistência” na política externa? Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas da nova página que se está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a China. A aceitação recíproca, obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às teorias sobre o “socialismo harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa a mudar.

Os chineses queriam evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de nova potência levaria a guerras com o antigo “hegemon”. Assim, o país abriu a sua economia para capitais internacionais o usarem como plataforma de exportação e se tornou o principal financiador do déficit comercial dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa estratégia assegurou tempo e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse o mercado interno e investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a liderança tecnológica com suas rivais americanas. Estamos chegando a uma profunda revisão dessas políticas, adotadas quando a coincidência de interesses prevaleceu sobre a rivalidade, em ambas as partes.

A luta tecnológica pelo predomínio no mundo globalizado pode produzir surpresas desagradáveis. Por trás da retórica arrogante e aparentemente desconexa de Trump, existe uma luta real pelo predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um sintoma dessa disputa nas tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no campo da segurança. As tensões no Pacífico, do Sul da costa chinesa ao litoral do Vietnã, são a face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências.

O antagonismo ainda é mais agudo no cyber espaço, onde batalhas são travadas diariamente. Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em assumir a priori um dos lados da disputa? Os que sustentam que devemos nos alinhar em tudo à Casa Branca desconhecem que a sociedade americana é democrática e que seu atual ocupante não expressa necessariamente um consenso duradouro. Vamos transferir a embaixada em Israel de Tel Aviv contrariando nossa histórica pregação em favor de dois estados naquela região do Oriente Médio?

E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita de “globalismo” do qual ela seria o instrumento? A única consequência prática é macular a imagem do Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto são os direitos humanos, o meio ambiente e a imigração. O dano à imagem do país, uma vez cristalizado, terá consequências contra os nossos interesses, como já se deram conta os setores mais lúcidos do empresariado brasileiro. Insistirá o governo no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as consequências dessa reviravolta seriam mais nocivas do que na nossa vizinhança. A crise da Venezuela se aprofunda.

O caso remete à “política do Barão”, pois mexe com nossos interesses mais imediatos, na América do Sul. É de louvar a prudência dos militares, mas é de temer a vocalização de alguns líderes políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o governo Maduro é antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me manifestado publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e políticas.

Contudo, falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em abrir caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada a ver com os interesses brasileiros de longo prazo. E em politica externa é disto que se trata. Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar que se deva fazer o que foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem reconstruir a democracia no país, é ignorar os fatos. 

Os desatinos verbais têm sido de tal ordem que resta o consolo de ver os militares recordarem que temos uma tradição de altanaria e soberania a respeitar, soberania nossa e dos demais países.

Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente com sua tradição: ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na Venezuela, apoiar a oposição, dar acolhida às vítimas do arbítrio do atual governo e manter acesa a chama democrática. Abrir espaço para que terceiros países, mormente distantes da América do Sul, queiram resolver o drama político pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de atuação internacional.