O globo, n. 31254, 03/03/2019. País, p. 14
Em cartas, as súplicas para que o STF mantenha a prisão em 2ª instância
Carolina Brígido
03/03/2019
Em 2018, tribunal recebeu um total de 84 mil correspondências
Tem de tudo: xingamento, protesto, elogio, reclamação sobre a aposentadoria que não foi paga, súplica para julgarem logo um processo aberto em uma vara de Justiça distante. É uma espécie de muro das lamentações a salinha do Supremo Tribunal Federal (STF) onde funciona a Central do Cidadão. No ano passado, os oito funcionários que trabalham lá leram 84 mil correspondências, vindas de todo canto do país. No mar de cartas e e-mails, um assunto se sobressaiu: 1,5 mil mensagens eram sobre a possibilidade de prisão de réus condenados em segunda instância.
O presidente da Corte, Dias Toffoli, marcou para 10 de abril o julgamento que vai definir se fica mantido o entendimento atual, que permite as prisões antecipadas, ou se os réus poderão aguardar por mais tempo em liberdade, até se esgotarem os recursos judiciais. Boa parte das manifestações de cidadãos endereçadas ao STF são em tom de desabafo, sem conotação jurídica. Na maioria delas, os autores defendem que os condenados sejam presos o quanto antes. “Eu quero que condenado cumpra a (prisão) em segunda instância, a lei não pode ser mudada por conveniência política, destruindo a confiança do povo brasileiro, encorajando outro a cometer crimes”, diz uma carta.
“Favor aprovarem a prisão a partir da condenação em segunda instância. Basta de impunidade! Ninguém aguenta mais. Este país virá abaixo caso o STF permita o trânsito em julgado na instância superior”, afirma outra. A Central do Cidadão fica a poucos passos do gabinete de Toffoli, no terceiro andar do prédio principal do STF. Todas as correspondências são respondidas, sobre qualquer assunto. Com exceção daquelas que não trazem exatamente uma pergunta e das cartas anônimas.
Os xingamentos e as mensagens ininteligíveis, que somam 4% do total, também não são respondidos. O GLOBO teve acesso ao teor das cartas e e-mails, com o compromisso de manter sob sigilo a identidade e o endereço dos remetentes. Cerca de 75% da correspondência é em papel. As sugestões são muitas —inclusive que seja feito um referendo sobre as prisões dos condenados por tribunal de segunda instância: “Sugiro que seja repassado (sic) ao cidadão as decisões a respeito da possibilidade da prisão em segunda instância, através de um referendo, tendo em vista que constitucionalmente não cabe ao Judiciário legislar, tampouco o Congresso está interessado em debater o assunto. Haja vista, que não desejamos, enquanto sociedade civil organizada, que legislem em causa própria.” Tem também quem apele aos antepassados para ser ouvido pelo STF.
“Sou bisneto e neto de desembargadores, meu bisavô era juiz nomeado por Pedro II e dentre outras coisas fundou a Faculdade de Direito em Belém e foi redator da primeira Constituição Republicana do Pará; fui criado com preceitos rígidos e não consigo aceitar a possibilidade de revisão da prisão de condenados em segunda instância”, afirmou um dos autores. Outros se consideram legitimados para falar em nome da população. “Solicito em nome de milhões de brasileiros que corrijam qualquer decisão em contrário à nossa Constituição para que possamos dormir em paz e tranquilos”, afirma uma mensagem.
Em 2008, ano seguinte à abertura da ação penal do mensalão na Corte, o então presidente, Gilmar Mendes, criou a ouvidoria para dar conta das demandas de pessoas comuns. Os funcionários do setor, hoje batizado de Central do Cidadão, atestam o crescimento no número das correspondências —especialmente a partir de 2012, quando o mensalão foi julgado em plenário. Em 2017, foram endereçadas 63 mil mensagens ao tribunal.
—O cidadão comum vê o STF como capaz de resolver qualquer problema —atesta Jean Mary Almeida Soares, um dos responsáveis pela leitura das cartas e e-mails endereçados à Corte, além do atendimento presencial de quem vai até o tribunal buscar uma informação. São poucos, mas existem aqueles que opinam sobre o real papel do tribunal:
“O STF deveria limitar seu trabalho exclusivamente a matérias de cunho constitucional e não servir, como hoje, de porto seguro, ainda que de maneira involuntária, para quem não quer acertar as contas com a lei”, diz uma mensagem.