O globo, n. 31303, 21/04/2019. País, p. 5

 

Alunos temem ideologia em prova para Itamaraty

Daniel Gullino

21/04/2019

 

 

Preocupação é se as ideias do novo chanceler, como crítica ao ‘globalismo’, influenciarão exame para o Instituto Rio Branco

No dia 2 de janeiro, horas após a cerimônia de transmissão de cargo para Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores, começou, em uma rede social, uma discussão em um grupo de alunos de um curso preparatório para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) —prova para o Instituto Rio Branco, porta de entrada do Itamaraty. Os participantes queriam saber se as ideias do novo chanceler —que incluem críticas ao chamado “globalismo” e ao multilateralismo —iriam influenciar a prova. “Tenho certeza que o CACD vai mudar drasticamente”, escreveu um dos alunos. “A bibliografia vai ser Olavo de Carvalho”, aventou outra estudante, referindo-se ao ideólogo de direita ligado aos bolsonaristas.

Inquietação

Os questionamentos deixaram o mundo virtual e têm inquietado alunos e professores de cursinhos desde que o chanceler empreendeu mudanças na grade curricular do Rio Branco, excluindo uma disciplina sobre América Latina. Os estudantes não quiseram ser identificados na reportagem, temendo represália.

—Está todo mundo apreensivo —diz Guilherme Casarões, cientista política e professor da FGV, que também dá aulas em um cursinho para o Itamaraty. —É normal que os governos promovam pequenos ajustes e inflexão. Agora, no governo Bolsonaro, a grande questão é que não existe uma diretriz bem definida sobre qual é a política externa do governo.

O exame do CACD é realizado anualmente e possui três fases: um questionário objetivo e duas provas escritas. O nível de exigência é considerado elevado, o que leva muitas pessoas a passarem anos estudando para conseguir a vaga.

De acordo com Casarões, as áreas com mais chances de mudanças são História e Política Internacional, mas também há risco em Economia e Direito Internacional.

David Magalhães, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e da PUC-SP, considera possível que a prova privilegie conceitos sobre o hemisfério norte, sobretudo os Estados Unidos, em detrimento das teorias sobre alianças latino-americanas:

—Na história da Política Externa Brasileira, ultimamente costumam dar ênfase aos períodos universalistas, em que o Brasil se relacionou com o Terceiro Mundo. O que pode acontecer é exaltarem governos que aprofundaram relações com os Estados Unidos, principalmente Dutra e Castelo Branco. Ernesto e o grupo olavista preferem propor uma política externa moral, que se atrele a uma versão civilizatória do Ocidente.

Para Magalhães, Araújo também pode dar destaque a autores clássicos, seguindo a alteração que ele já fez no currículo de formação dos diplomatas. Ele aposta, contudo, em mudanças pontuais: —Nunca muda dramaticamente. Eles devem incluir mais autores clássicos, que remetam a uma ideia de civilização, ocidentalismo.

Divergência

O GLOBO conversou com outros dois professores de cursinhos, que preferiram não se identificar. Ambos relataram a preocupação de alunos, mas divergem sobre sua pertinência: um acredita que há sinais de mudança, enquanto o outro diz que ainda não há motivos para temer isso. Alterações nas provas decorrentes de troca de governo ocorreram no governo Lula, quando o exame de inglês deixou de ter um caráter eliminatório. As questões também passaram a refletir a política externa do petista, que privilegiava autores latino-americanos. David Magalhães não descarta a inclusão de obras de Olavo de Carvalho na bibliografia da prova para o Instituto Rio Branco.

—Se aparecer o “Jardim das Aflições”, não ficaria completamente assustado, porque o próprio Olavo escolheu o Ernesto—diz o professor. Procurado, o Itamaraty afirmou que o edital ainda não foi lançado e que todas as informações disponíveis até o momento sobre o exame estão no site do Instituto Rio Branco.

Araújo divide o protagonismo da política externa brasileira com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSLSP), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, e com Filipe Martins, assessor internacional do presidente Jair Bolsonaro. O ministro faz a linha direta entre Olavo de Carvalho e o Palácio do Planalto.