O globo, n. 31299, 17/04/2019. País, p. 4

 

Instituições em choque

Carolina Brígido

17/04/2019

 

 

 Recorte capturado

Dodge pede que Supremo arquive inquérito, e Moraes nega

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou em confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) ontem a ope diro arquivamento do inquérito sigiloso que apura notícias falsas e ataques contra a própria Corte e seus integrantes. Para ela, a investigação não deveria ter sido aberta no tribunal, porque a suposta vítima de um crime não pode investigar e julgar os fatos. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, ignorou a manifestação e manteve o inquérito. O presidente do STF, Dias Toffoli, foi além: deu prazo de mais 90 dias para o prosseguimento das investigações.

O inquérito foi aberto no mês passado, de forma pouco usual, sem pedido MP, por ordem de Toffoli. Anteontem, Moraes determinou que a revista digital “Crusoé” eosite“O Antagonista” retirassem doar—sob pena de multa diária de R$ 100 mil — a reportagem “O amigo do amigo do meu pai”, que revelava documento de um processo da Lava-Jato no Paraná no qual o empreiteiro Marcelo Odebrecht afirmava ser esse o codinome de Toffoli.

O juiz Luiz Antônio Bonat, responsável pela LavaJato no Paraná, retirou do inquérito, segundo o G 1, esse documento que embasou a reportagem. Bonat atendeu a um pedido do Ministério Público Federal, segundo o qual a declaração não tem relação coma investigação de irregularidades na construção da Usina de Belo Monte, no Pará.

Os advogados da revista e do site recorreram ontem à noite da decisão do Supremo, depois de Mário Sabino, jornalista responsável pela publicação, ter prestado depoimento na Polícia Federal, conforme ordem do STF. André Marsiglia, advogado da revista, disse que o depoimento ocorreu sem que eles tivessem acesso aos autos: “Não sabemos e nem fomos esclarecidos sob qual condição o declarante está sendo ouvido”, disse Marsiglia a “O Antagonista”.

Lei de segurança nacional

Moraes determinou ontem buscas e apreensões contra pessoas que utilizaram a internet para atacar o STF. O relator também determinou o bloqueio das redes sociais dos investigados. Nas ordens de busca, Moraes sustenta que há indícios de que os investigados cometeram crimes previstos na Lei de Segurança Nacional (LSN), editada durante a ditadura militar. “Verifica-se postagem reiterada em redes sociais de mensagens contendo graves ofensas a esta Corte e seus integrantes, com conteúdo de ódio e de subversão da ordem”, escreveu Moraes.

No ofício enviado ao STF, Dodge pediu que as medidas adotadas durante as investigações fossem todas anuladas. Segundo a procuradora, não foi delimitado o episódio específico a ser investigado, tampouco os alvos.

Dodge afirmou que não há sentido um inquérito para investigar críticas e ofensas ao STF tramitar no próprio tribunal. “Note-se que a competência da Suprema Corte é definida pela Constituição tendo em conta o foro dos investigados e não o foro das vítimas de ato criminoso. Ou seja, a competência do Supremo não é definida em função do fato de esta Corte ser eventual vítima de fato criminoso”, escreveu.

Acusador e juiz

A procuradora-geral disse que “o sistema penal acusatório estabelece a intransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga”. Para ela, não se admite que “o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse”.

Na decisão, Moraes afirmou que o pedido de arquivamento da PGR “não se configura constitucional e legalmente lícito”, já que a investigação não foi solicitada pelo Ministério Público.

Também ontem, o ministro Edson Fachin deu prazo de cinco dias para Moraes prestar informações sobre a decisão que mandou retirar do ar reportagem dos sites “Crusoé” e “O Antagonista”. Com as informações, Fachin vai julgar a ação da Rede Sustentabilidade, que quer a revogação da medida. O partido entrou com a ação no Supremo para suspender o inquérito que apura ofensas à Corte e seus integrantes.

O ministro do STF Marco Aurélio Mello criticou, para a colunista Míriam Leitão, a abertura do inquérito:

— Quando vemos algo que possa haver crime, nós submetemos ao Ministério Público. O Estado acusador é o MP, não é o Supremo. O presidente resolveu instaurar o inquérito. O primeiro equívoco é esse. (...) Agora se partiu para uma censura, o que é inconcebível de um guardião maior da Constituição. (...) E tudo se fez visando a proteger um dos integrantes do STF.

Opinião do GLOBO

Além da censura

NA DÉCADA de 70, agentes da PF visitavam as redações para impedir que certas notícias fossem divulgadas. Na manhã de segunda, um oficial de Justiça bateu à porta da revista digital “Crusoé” e do site O Antagonista, com a proibição do Supremo de que uma notícia sobre o presidente da Corte, Dias Toffoli, continuasse na internet.

LOGO O STF, que reiteradas vezes tem garantido o direito constitucional à liberdade de imprensa. Uma coisa é processar responsáveis pela edição de supostas calúnias, injúrias e difamações. Outra, é impedir a veiculação de matérias, como fazia a PF na ditadura militar.

TUDO É grave, porque a comprovação da notícia de que o empreiteiro Marcelo Odebrecht citou o ministro em depoimento à Lava-Jato foi retirada dos autos, como confirmado pela TV Globo.

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Disputa pode ir a plenário e expor ainda mais o tribunal

Carolina Brígido

17/04/2019

 

 

Até aqui, o inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar ataques à própria Corte gerou incômodo entre os ministros e críticas ácidas nas redes sociais. Agora, um novo elemento chegou para aumentar a polêmica. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que estava quietinha, resolveu enfrentar o tribunal e declarou o inquérito arquivado . É apenas a primeira página de uma guerra que tem elementos para segregar ainda mais a cúpula do Judiciário.

O inquérito foi aberto de forma pouco usual. A praxe é a Procuradoria-Geral da República (PGR) pedir a investigação e o STF abrir. Nesse caso, o presidente do STF, Dias Toffoli, instaurou o inquérito e nomeou Alexandre de Moraes relator. Dodge, portanto, não participou de nenhuma fase do procedimento. Mesmo depois do inquérito aberto, não foi convidada a opinar.

Em declarações à imprensa, Moraes explicou que o inquérito é presidido pelo Supremo, com a ajuda da Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público. Ele afirmou que o procedimento está previsto no Regimento Interno da Corte. Quando se trata de um inquérito aberto nos padrões usuais, se a PGR pedir arquivamento, o STF tem como praxe obedecer. Mas esse caso é diferente desde a origem.

O mais provável é que Moraes não atenda à ordem de Dodge e declare que o inquérito continuará aberto. Dodge terá, então, duas alternativas. A primeira é voltar ao silêncio. A segunda é recorrer para que o pedido de arquivamento seja levado ao plenário do STF. Se ela fizer isso, caberá ao próprio Moraes decidir se envia o caso para o colegiado ou não.

Se o pedido de arquivamento for a plenário, as entranhas do STF ficarão expostas. Na Corte, o inquérito está longe de ser unanimidade. Os ministros serão obrigados a discordar em público —e, dessa forma, desautorizar o próprio presidente, que determinou a abertura das investigações.

Caso Moraes decida não levar o pedido ao plenário, novamente Dodge tem a opção de ficar calada. Ou, se quiser, colocar ainda mais lenha na fogueira. Ela poderá entrar com um mandado de segurança contra a atitude de Moraes de não levar o caso ao plenário. A ação seria sorteada para um dos outros ministros. Se o sorteado for um dos que discordam da existência do inquérito, a briga interna no STF ficará novamente exposta.

Mesmo que Moraes mantenha o inquérito aberto, a investigação terá poucas chances de prosperar. Isso porque, para um inquérito avançar, o Ministério Público precisa

denunciar os investigados. Se a chefe do Ministério Público já diz de antemão que não concorda com as investigações, a apuração ficará estacionada na fase policial, sem chance de punição para eventuais criminosos.

Nesse caso, o inquérito terá apenas uma função: marcar posição no sentido de que o STF é uma instituição que merece respeito e, por isso, não pode ser alvo de ataques ou eventuais maledicências. A posição é defendida não apenas por Toffoli e Moraes. O ministro Gilmar Mendes também já deu declarações de apoio ao inquérito.