O globo, n. 31296, 14/04/2019. País, p. 4
MPF e o destino de R$ 13 bi
Vinicius Sassine
14/04/2019
Dinheiro é de empresas que fecharam acordo para reparar danos por corrupção
A ampliação das ações de combate à corrupção e de iniciativas que vêm permitindo o retorno de recursos aos cofres públicos deu ao Ministério Público Federal (MPF) o poder de influenciar, direta ou indiretamente, no destino de pelo menos R$ 13,4 bilhões. Este valor equivale a mais de três vezes o orçamento do MPF em 2019, de R$ 4,1 bilhões. Junto do crescimento dos valores recuperados, vieram questionamentos sobre os limites legais da gestão do Ministério Público sobre os recursos.
O episódio mais ruidoso — e que gerou uma guerra interna, opondo Procuradoria-Geral da República e força-tarefa da Lava-Jato no Paraná — foi a proposta dos procuradores de Curitiba de criação de uma fundação para gerir até R$ 2,5 bilhões pagos pela Petrobras. Críticos da atuação do MPF viram excesso na ideia de criar a fundação.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, atacou a proposta ao dizer que era “pernicioso” que surgissem “super órgãos” na esfera pública. Integrante da Lava-Jato do Paraná, e responsável pelas planilhas da distribuição dos recursos dos acordos de leniência, o procurador da República Paulo Galvão afirma que o MPF não faz gestão, apenas cuida da definição das proporções a serem reparadas a cada vítima —Petrobras, União, estados e municípios:
— Não há gerência nem ingerência —argumenta.
Acordos de leniência
Os R$ 2,5 bilhões foram pagos pela Petrobras nos Estados Unidos como punição pelos prejuízos de investidores do mercado norteamericano, e remetido pelas autoridades dos Estados Unidos ao Brasil.
O acordo, que ainda será discutido no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), está por ora suspenso por decisão do ministro Alexandre de Moraes e o dinheiro, bloqueado. Na semana passada, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, sugeriu ao STF que os recursos sejam repassados ao Ministério da Educação.
Diante dos questionamentos sobre a ingerência do MPF sobre o dinheiro recuperado nessas ações, O GLOBO analisou nove acordos de leniência — uma espécie de delação premiada de pessoas jurídicas — assinados no Paraná, Distrito Federal e em Minas Gerais. O montante de R$ 13,4 bilhões tende a crescer, uma vez que a Câmara de Combate à Corrupção da PGR já homologou 23 acordos de leniência assinados na primeira instância. Parte dos termos, porém, está em sigilo ou não é divulgada pelas instituições nos estados. Em Brasília, por exemplo, os procuradores assinaram acordo com a J&F.
A empresa precisa pagar multa de R$ 10,3 bilhões ao longo de 25 anos, como ressarcimento pelos danos com corrupção. Deste total, R$ 8 bilhões devem ir para a União, BNDES, Caixa Econômica e fundos de pensão lesados. E uma fatia de R$ 2,3 bilhões deve se destinar a projetos sociais.
Caberá ao MPF indicar que tipo de serviço pode ser desenvolvido. A instituição também terá poder de veto na composição de um conselho para definir o destino do dinheiro e será autorizada a fazer sugestões de nomes para o colegiado.
STF balizará discussão
O MPF chegou a pensar num modelo de fundação privada para gerir os R$ 2,3 bilhões de multa. A fundação partiria da própria empresa, mas a ideia perdeu força. Por enquanto, os R$ 27 milhões já depositados pelo grupo devem ir para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça.
O procurador da República Anselmo Lopes, um dos responsáveis pelo acordo, diz que as interpretações que o STF vai conferir à discussão sobre a fundação em Curitiba serão utilizadas no caso da J&F.
— Dependendo do que o STF disser, os argumentos serão usados para a construção desse modelo —afirma. Em Curitiba, os acordos com Odebrecht e Braskem, no valor de R$ 6,9 bilhões, preveem distribuição dos recursos pelas empresas ao Departamento de Justiça dos EUA e à Procuradoria Geral da Suíça “conforme a determinação do MPF”. Além disso, ambas precisam “disponibilizar valores ao MPF mediante depósito judicial”.
O Ministério Público é determinante ainda ao influenciar valores como R$ 1 bi acertado com a Andrade Gutierrez e dos R$ 700 milhões com a Camargo Corrêa.
Estão depositados numa conta judicial, desde meados do ano passado, R$ 85 milhões do acordo com a Odebrecht. O dinheiro não teve um destino porque não há consenso sobre quanto cabe a estados e municípios lesados.
Até aqui, a criação da fundação privada sugerida pelo MPF no Paraná, foi o modelo que mais avançou a fronteira sobre o papel do órgão.
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Zona cinzenta nos acordos de leniência
Vinicius Sassine
14/04/2019
Uma zona cinzenta sempre marcou a realização de acordos de leniência pelo Ministério Público Federal (MPF). Para assinar esses acordos com empresas cujos donos confessaram ter corrompido, os procuradores da República recorrem a um conjunto de leis, sendo a principal delas a Lei Anticorrupção, vigente desde 2013. Esta lei, porém, atribui à Controladoria-Geral da União (CGU) —um órgão do governo federal —a responsabilidade pelo instrumento de leniência. A mesma lei dá ao MPF o poder de ajuizar ações civis. Logo, é aceito que colaborações de pessoas jurídicas sejam firmadas para que se evitem essas ações.
Os procuradores fazem uso ainda da lei de organizações criminosas, também vigente desde 2013, que trouxe o instrumento das delações premiadas, voltadas para pessoas físicas. Mas ela tampouco especifica a destinação do dinheiro. Enquanto a força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba assina acordos de leniência desde outubro de 2014, a CGU só assinou o seu primeiro em julho de 2017.
Até agora, o órgão do governo efetivou apenas seis acordos, abatendo dos valores a serem pagos as quantias acertadas primeiramente com o MPF. A confusão gerou uma sobreposição de acordos e sucessivos questionamentos pelo Tribunal de Contas da União. Com o passar do tempo, o MPF passou a se atribuir mais influência na destinação do dinheiro.
O primeiro acordo de leniência assinado pela Lava-Jato, por exemplo, com a SOG Óleo e Gás, previu uma destinação clara para os R$ 15 milhões acertados: R$ 7,5 milhões para a Petrobras e R$ 7,5 milhões para o Fundo Penitenciário Nacional, sem uma intermediação decisiva do MPF.
Outros acordos, como com a Keppel Fels e com a Rolls-Royce, previram reparação direta à Petrobras ou à União, sem intermediação do MPF. Em Montes Claros (MG), a leniência com a Signus do Brasil, envolvida na máfia das próteses, destinou dinheiro diretamente à União e ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça.