O globo, n. 31295, 13/04/2019. País, p. 4

 

Erosão do orçamento

Manoel Ventura

13/04/2019

 

 

Governo corta verba de fiscalização de barragens

Pouco mais de dois meses depois do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), que deixou mais de 270 mortos e desaparecidos, o governo federal decidiu bloquear R$ 15 milhões do orçamento da Agência Nacional de Mineração (ANM), o que equivale a 22% dos recursos que o órgão tem disponível para gastar neste ano. Diretores da ANM afirmam que a decisão irá comprometer a já precária fiscalização de barragens de mineração no país. Foram bloqueados gastos de investimentos e de manutenção de operações, fiscalizações, e de unidades do órgão. Neles não estão incluídos gastos com pessoal (pagamento salários e benefícios para servidores ativos e aposentados). O bloqueio de gastos deve impedir que a ANM atenda ao pedido do Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais, que ajuizou ação civil pública para que o órgão seja obrigado a inspecionar as mais de 700 barragens de mineração do país consideradas inseguras ou com segurança inconclusiva. Hoje, há apenas 50 fiscais deste tipo aptos a atuar no país. Funcionários da ANM também temem que o orçamento menor obrigue o órgão a fechar unidades em alguns estados. Além de acompanhar a situação das barragens, ANM precisa fiscalizar e regulamentar as atividades minerárias como um todo, inclusive o recolhimento dos royalties de mineração. Essas atividades também devem ficar comprometidas. Uma lei federal sancionada em 2017 diz que a ANM deve receber 7% do total arrecadado com a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), que é pago pelas mineradoras. Caso a norma fosse cumprida, a agência receberia cerca de R$ 210 milhões neste ano. Na prática, o orçamento deverá ser de menos de um quarto deste valor. Inicialmente previsto para R$ 63 milhões, a verba da agência será reduzida para R$ 48 milhões em 2019, segundo integrantes do órgão. O orçamento ainda mais baixo foi comunicado aos dirigentes da ANM em uma reunião, na semana passada, pelo ministério. Para a ambientalista Maria Teresa Corujo, integrante do Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam), o corte orçamentário ameaça o controle das estruturas existentes: — Essa redução no orçamento é gravíssima. Uma auditoria do TCU apontou que a AMN não tinha condição de fiscalizar as barragens de Minas. Já não temos a estrutura necessária para fiscalizar as barragens atuais, e qualquer redução significa que a situação, que é temerosa, vai se agravar. A ANM foi criada numa tentativa de estruturar um órgão federal de mineração forte, nos moldes do que já existe no setor elétrico (com a Aneel) e do petróleo (com a ANP). A expectativa dos dirigentes da entidade era de que o orçamento deste ano fosse usado justamente para reestruturar o órgão, com reformas nos prédios e compra de equipamentos. Com o desastre de Brumadinho, todo o foco passou para a fiscalização de barragens. Mas não é de hoje que a agência sofre com a falta de estrutura. Até o rompimento do reservatório da Vale, a agência tinha apenas 34 fiscais de barragens. Em Minas, eram apenas cinco. Para fiscais do órgão, seriam necessários ao menos dois mil profissionais para acompanhar presencialmente todo o sistema de barragens de mineração no país. Em março, o Ministério da Economia movimentou 26 servidores de diferentes órgãos federais para a ANM. Deste total, 16 vão atuar especificamente na fiscalização.

A posição do governo

Ontem, após o GLOBO noticiar o bloqueio de recursos da agência, o Ministério de Minas e Energia (MME) divulgou nota sustentando que o contingenciamento de 22% no orçamento não “implicará em comprometimento às atividades de fiscalização” da ANM. A pasta diz que a ação de fiscalização é prioritária, e há opções na execução orçamentária, como o remanejamento de verbas do ministério que, se necessário, “vai assegurar a plena capacidade de se manter os trabalhos de fiscalização”.

“Até o momento, a ANM não apresentou formalmente ao ministério qualquer demanda de liberação de recursos financeiros e que objetivasse manter a regularidade do seu funcionamento”, acrescentou o MME. 

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Três meses depois, uma onda de solidariedade infantil

Ana Lúcia Azevedo

13/04/2019

 

 

Ainda à procura de dezenas de vítimas em meio ao rejeito, bombeiros ganham estímulo em cartas enviadas por crianças

“Bombeiro, ache o meu pai”. Escrito numa cartinha com um desenho de bombeiros na lama emoldurado de azul, o pedido é de uma menina de Minas Gerais, de 7 anos. E, sim, os bombeiros continuam a buscar aqueles que, como o pai dela, desapareceram na tsunami de rejeito de mineração causada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro. Passados quase três meses, ainda há 52 pessoas a encontrar no meio do rejeito e o estímulo vem das cartas de crianças. Já foram identificados 225 mortos . Algumas cartas, como a enviada pela menina Ana Clara, pedem ajuda. Outras, como a de um menino chamado Pedro, são de incentivo: “Vocês são os melhores bombeiros do mundo. Vou sempre confiar em vocês”. O tenente Pedro Aihara, portavoz do Corpo de Bombeiros de Minas, diz que desde a tragédia já chegaram milhares de cartas de crianças de todo o Brasil e até do exterior. —Nunca contamos quantas são. Estão sempre chegando e nos dão força para continuar —observa. Ninguém sabe ao certo como a onda de solidariedade infantil começou. Há aquelas espontâneas. Muitas são reunidas por escolas, ONGs e igrejas. Esta semana, duas caixas lotadas delas foram entregues no quartelgeneral dos bombeiros em Córrego do Feijão, em Brumadinho. E é com a leitura das cartas das crianças que começa o dia das equipes que todos os dias partem para lama em busca dos mortos. Segundo Aihara, 150 bombeiros militares, cinco cães e 80 máquinas pesadas participam das buscas. —As crianças têm uma relação diferente com a morte. Elas continuam a lembrar. Os adultos acabam envolvidos pelo dia a dia, outros fatos e esquecem. As crianças, não. Além disso, a imagem do bombeiro que se arrisca para salvar os outros ficou evidente nessa tragédia e as crianças se inspiram. E nos trazem força e inspiração —afirma Aihara. Além da dureza do trabalho em terreno perigoso, há o peso da dor das famílias de desaparecidos e dos moradores da comunidade de Córrego do Feijão. Eles acompanham as buscas de perto. —Passamos a conhecer essas pessoas e é como se conhecêssemos também aqueles que buscamos. Essa conexão é muito boa, mas tem um impacto psicológico grande sobre as equipes. Não queremos decepcionar ninguém —frisa ele. Com a promessa de trabalhar até que a última pessoa da lista de desaparecidos seja encontrada, os bombeiros esperam que um dia as cartas possam dizer o mesmo que uma pendurada num mural da corporação: “bombeiros, obrigado por salvar meu pai”.