Valor econômico, v. 19, n. 4515, 01/06/2018. Brasil, p. A4

 

Entrevista - Bernard Appy: 'Nosso sistema tributário estimula essas reações'

Bernard Appy

Marta Watanabe

01/06/2018

 

 

O sistema brasileiro, que diferencia produtos na tributação de bens e serviços, dá espaço para movimentos como o dos caminhoneiros, que buscam resolver problemas por meio da redução da carga de impostos. Um sistema com um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) com uma ou poucas alíquotas não incentivaria isso e, por meio de uso de créditos, ainda permitiria certo ajuste no caso de altas bruscas de preços, como aconteceu com os combustíveis. Essa é a opinião do economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e ex-secretário de Política Econômica da Fazenda.

"Por que tenho que reduzir tributação sobre combustível, mas não sobre energia e telecomunicações? Só porque o caminhoneiro pode deixar o país de refém?", diz o economista, argumentando sobre os efeitos da diferenciação de tratamento tributário entre os setores.

Para Appy, o custo de R$ 13,5 bilhões que o governo deve ter com as concessões feitas aos caminhoneiros é muito alto. "Isso é quase metade do custo total do Bolsa Família no país todo." Além do valor, ele chama a atenção para o custo social. Se não fosse a negociação com o governo, os caminhoneiros teriam um aumento de custo que num mercado competitivo seria repassado ao valor do frete. Com a negociação, em vez disso o custo está sendo repassado para sociedade inteira, por meio de uma piora da percepção da política fiscal.

Para o economista a origem da crise com os caminhoneiros não foi tributária, embora a discussão para a solução tenha ficado centrada na redução de impostos e contribuições. Segundo ele, é complicado sugerir aos Estados a redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis num momento em que muitos deles estão em difícil situação fiscal. Appy diz ainda que a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) pode ser usada de "forma inteligente" para diluir as flutuações de preços de combustíveis ao longo do tempo em vez de ser usada como fonte de receita para gastos específicos.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o sr. avalia as medidas do governo para colocar fim à greve?

Bernard Appy: As concessões somam R$ 13,5 bilhões, que o governo deve cobrir de várias formas. É um custo relevante porque, se não fossem as concessões, esse espaço fiscal poderia ser usado para reduzir a carga tributária ou para financiar outras despesas públicas, como investimentos.

Valor: O que o sr. achou das medidas para compensar os custos das concessões aos caminhoneiros, como a redução de benefícios aos exportadores?

Appy: Há um lado bom, de sinalização de compromisso com a responsabilidade fiscal. Eles poderiam no limite ter encaixado isso dentro do teto de gastos, via abertura de crédito extraordinário [despesas incluídas por meio de créditos extraordinários são excluídas do limite do teto]. Mas há o lado ruim, que é desmontar a estrutura de benefícios sem dar previsibilidade para as empresas se ajustarem às mudanças. Acho que tem que reduzir os benefícios todos no Brasil, inclusive esses que estão sendo reduzidos. A questão é que, quando você faz isso de uma hora para a outra, tira a possibilidade de as empresas se prepararem.

Valor: E a conta ficou alta, não?

Appy: A conta ficou extremamente alta, o valor é quase metade do custos do Bolsa Família. Em cima disso há uma questão importante, que é entender o custo social do que foi concedido aos caminhoneiros. Se não fosse a negociação com o governo, os caminhoneiros teriam um aumento de custo de combustível que num mercado competitivo seria repassado ao valor do frete. Com a negociação, em vez disso o custo está sendo repassado para a sociedade inteira, por meio de uma piora da percepção da política fiscal. Um segundo custo vem da desorganização da atividade produtiva. Por exemplo, o sacrifício de aves que aconteceu por falta de ração. Isso reduzirá a oferta do produto e aumentará os preços, o que deve durar alguns meses. Mesmo que seja no médio prazo, isso vai levará a um custo que a sociedade vai pagar. E há mais um ponto.

Valor: Qual é?

Appy: Duas das concessões feitas foram a adoção de frete mínimo e a definição de que 30% dos fretes da Conab serão contratados junto a caminhoneiros autônomos, o que vai reduzir a competição no mercado de frete. A consequência a longo prazo é aumentar o custo do frete, mais um custo social. De todas as medidas, a única que é razoável, do ponto de vista social, é a de dar mais previsibilidade ao aumento do custo de óleo diesel aos caminhoneiros, com reajuste a cada 30 dias. O ideal é que tivesse sido feito antes. Em todas as outras na verdade os benefícios aos caminhoneiros estão sendo jogados como custo à sociedade. Isso só ocorre porque tornaram o governo e a sociedade reféns e boa parte disso resulta da péssima estratégia do governo.

Valor: Como o senhor vê o uso de redução de tributos para resolver a greve dos caminhoneiros?

Appy: Se tivéssemos um bom sistema tributário, não usaríamos redução de tributos como forma de reduzir a crise. Num bom sistema, não há diferenciação por produtos como há no Brasil na tributação de bens e serviços. Isso gera incentivo para movimentos buscando resolver problemas por meio de tributos. O fato é que a gestão que fazemos do sistema tributário no Brasil estimula esse tipo de reação. O próprio governo costuma usar mudanças na tributação diferenciada por produtos com fins conjunturais. O governo estava precisando de dinheiro para fazer ajuste fiscal em 2017 e resolveu aumentando a alíquota de PIS/Cofins nos combustíveis.

Valor: A receita já havia sido dada pelo próprio governo?

Appy: O próprio sistema que temos com tributação diferenciada cria incentivos a movimentos como esse dos caminhoneiros para pedir a redução de tributos. Nos países que adotam o IVA, há somente uma alíquota, no máximo três. É muito improvável nesses países um movimento para redução de alíquotas sobre combustíveis. Se tivesse um bom IVA no Brasil, o próprio sistema tributário faria uma parte do ajuste no caso de aumento de preços porque o transportador de carga na prestação de serviços usaria o crédito do imposto pago no insumo. Se subisse o preço do diesel, e junto o imposto, automaticamente isso geraria crédito para o transportador de carga e diminuiria o imposto a pagar.

Valor: E além de zerar Cide e PIS/ Cofins, o governo federal chegou a propor aos Estados a redução de ICMS sobre combustíveis.

Appy: A questão dos Estados é complicada. Alguns deles já estão em situação bastante difícil. Eles precisam fazer ajuste fiscal e o governo quer que eles reduzam ICMS sobre combustíveis para ajudar a conter a crise? Eu não gosto dessa solução.

Valor: Essas mudanças aumentam ainda mais as distorções do sistema tributário?

Appy: As distorções já existem. E elas já são muito grandes. Mas o problema maior é que a diferenciação por produto na tributação de bens serviços cria espaço para se discutir os tributos setorialmente. A tributação não deve ser discutida por produtos, senão vira bagunça. É preciso discutir de forma geral. A carga tributária brasileira é alta e não se resolve isso reduzindo tributo e sim reduzindo despesa. Se reduzir tributo e não se reduzir despesa, você quebra o país. Não se deve discutir carga tributária para resolver movimento grevista, muito menos discutir carga tributária por produto. A tributação do óleo diesel devia ser, antes das revisões negociadas, em média de 28% a 29% do preço na bomba. Energia elétrica e telecomunicações pagam mais imposto que isso. Por que tenho que reduzir tributação sobre combustível, mas não sobre energia e telecomunicações? Só porque o caminhoneiro pode deixar o país de refém?

Valor: E como o senhor avalia essa política em que a União deve cobrir a diferença entre o repasse diário de preços aos combustíveis e o reajuste da tarifa a cada 30 dias?

Appy: Faz sentido a Petrobras repassar as flutuações no preço. Isso tem custo, mas é um custo administrável. Certamente mais administrável do que o custo de resolver essa crise do jeito que veio agora. O Tesouro está assumindo um risco. Se usasse a Cide seria ideal. Num modelo desses, a Cide não deveria ser usada como fonte de receita para financiar gastos específicos. Não consigo entender qual a função da Cide combustíveis no Brasil. A rigor ela é um imposto extrafiscal, que não tem objetivo de arrecadar. Poderia ser um imposto sobre carbono, para desestimular o uso de combustíveis fósseis, mas se fosse esse o objetivo teria que ter uma alíquota fixa e pouco variável ao longo do tempo. Ela foi usada no passado para estabilizar o preço dos combustíveis, mas, em vez de ser usada de forma previsível, é usada arbitrariamente. Isso é ruim. Poderia ser uma forma de evitar flutuação forte dos combustíveis.

Valor: E como a Cide poderia ser aproveitada?

Appy: É simples. Você cria a Cide e, numa alta de preços por conta do aumento do preço do petróleo ou da desvalorização do câmbio, a Petrobras como empresa precisa repassar no preço, mas o governo no curto prazo pode reduzir a Cide para compensar esse efeito. Somente para que no curto prazo não haja uma flutuação muito grande no preço. A cada mês a Cide pode ser ajustada para diluir no tempo os efeitos da flutuação dos preços de combustíveis, para eliminar essa a variação diária de preços.