Valor econômico, v. 19, n. 4519, 07/06/2018. Especial, p. A16

 

Duro em matérias penais, Barroso é formador de maiorias no STF

Maíra Magro

Luísa Martins

07/06/2018

 

 

O ministro Luís Roberto Barroso é relator no Supremo Tribunal Federal (STF) do inquérito em maior evidência hoje entre tantos que investigam a atuação de políticos: o que pode complicar muito a vida do presidente Michel Temer. A investigação, que apura o suposto favorecimento a empresas portuárias em troca de propina, envolveu a primeira quebra de sigilo contra um presidente da República em exercício. Ontem, um segundo inquérito motivou novo pedido de quebra de sigilo contra o mesmo e importante personagem, o presidente, ainda não autorizado (ver Jornal diz que PF pediu quebra de sigilo de Temer).

Atendendo a pedido da Polícia Federal, há alguns meses, mesmo sem o aval da Procuradoria-Geral da República, Barroso determinou a quebra do sigilo bancário de Temer, justificando tratar-se de procedimento padrão nas investigações criminais. No dia 9 de maio, a pedido da PF, ele prorrogou as investigações por mais 60 dias, possibilitando novas diligências que vêm chegando cada vez mais perto do presidente.

Por medidas como essas Barroso é considerado, por criminalistas, o juiz mais duro do STF em matéria penal. Título que rejeita. Alguns que o conheceram antes, quando atuava como advogado, não o reconhecem hoje.

Logo que entrou no Supremo em junho de 2013, os colegas não lhe davam muita atenção, por ser o "novato" da vez. Hoje, meia década depois, Barroso tornou-se um dos ministros em maior evidência na Corte, com votos muitas vezes polêmicos, mas em geral capazes de formar maioria no plenário.

Ex-integrante de movimento estudantil, nomeado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) para o Supremo, ele paradoxalmente deu o voto mais contundente pela rejeição do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos presidentes mais populares do Brasil.

Partiu dele a proposta de reinterpretar a Constituição para restringir o foro privilegiado de parlamentares. A ideia venceu apesar da resistência de alguns de seus pares, sem falar nos políticos.

Também foi dele a iniciativa, inédita, mas controversa, de alterar um indulto presidencial com a intenção de impedir o perdão aos crimes de colarinho branco, como a corrupção. Nas duas situações foi acusado de atravessar a Praça dos Três Poderes para usurpar funções do Legislativo e do Executivo.

Apesar da competência e do preparo, apontados por unanimidade, chegou a ser chamado de "pior ministro do STF" pelo deputado do PT Wadih Damous, seu conterrâneo. "Moralista" e "ultraconservador" são outros adjetivos que os criminalistas passaram a lhe dirigir. Uns o acusam de ter se somado, talvez por vaidade, talvez por pretensões políticas, aos que conclamam uma cruzada anticorrupção para salvar o Brasil - atitude que, partindo de um juiz, comprometeria a tão almejada imparcialidade.

Barroso diz que se considera um juiz "moderado, mas sério" em questões criminais e refuta qualquer intenção de se candidatar a um cargo eletivo. "Não tenho nenhum interesse, zero. Minha missão é outra."

A performance penal do ministro surpreende ainda mais porque ao ser nomeado, bem ao final do julgamento do mensalão, ele dizia pregar o direito penal mínimo. Votou a favor da aceitação dos embargos infringentes, que garantiram a revisão do julgamento de alguns réus, e disse que o caso era um ponto fora da curva. Na época, foi interpretado como crítico de uma suposta politização do STF. O que fazia era, na verdade, um elogio: o Judiciário finalmente estendia seus tentáculos sobre os poderosos.

Questionado se mudou sua visão sobre o enfrentamento de crimes, ele nega. "Não sou uma pessoa punitivista. Não acredito em exacerbação do direito penal e muito menos em vingadores mascarados". Mas diz que acredita participar de uma "reviravolta" no direito penal brasileiro. "Porque era um direito penal da impunidade, do privilégio, do favorecimento, e eu sou contra tudo isso, mas dentro da Constituição e da mais estrita legalidade. Quando você muda paradigmas e tira as pessoas da sua zona de conforto, a primeira reação é negativa."

As reprovações que sofreu ao votar pela prisão de Lula ele atribui ao fato de rejeitar o compadrio. "Se você aceita ser juiz, tem que abdicar de sentimentos e preferências pessoais." Não esconde, entretanto, o desconforto em atuar como juiz criminal. "Não faz parte da minha natureza."

Em sua avaliação, funcionar como corte penal é um papel tão impróprio para o STF que, na primeira oportunidade, trabalhou para restringir o foro privilegiado.

Afirma pautar sua atuação, como em outras áreas, pela busca da igualdade, o que geraria incômodo aos mais favorecidos. "Sou igualitário num país que, no geral, acha que existem melhores e piores, superiores e inferiores. Porque quando se prendiam pobres a granel, o garantismo era um discurso muito tênue." Como exemplo, menciona alguns de seus votos mais importantes a favor do réu em questões criminais: o que descriminalizou o aborto no primeiro trimestre da gravidez; o pela não admissão de prisão preventiva do acusado em casos de quantidade não expressiva de drogas; e outro pela não criminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Com linguagem mais compreensível, realçada pelo jurisdiquês que predomina na Corte, Barroso insiste que o direito penal, no Brasil, "precisa ser mais manso no andar de baixo e mais severo no andar de cima". E acrescenta que "um direito penal absolutamente incapaz de alcançar as pessoas que ganham mais de cinco salários criou um país de ricos delinquentes."

Já há alguns anos, Barroso atuou nos bastidores do STF para cutucar um ponto nevrálgico do sistema criminal brasileiro: a interpretação do princípio da presunção da inocência, que até então poupava o réu do cumprimento de penas até que se esgotassem todos os recursos pelas sinuosas instâncias do Judiciário. Barroso via o modelo como "desastroso", por gerar impunidade sobretudo para os capazes de contratar bons e caros advogados.

No segundo semestre de 2015, procurou o colega Teori Zavascki, então relator da Operação Lava-Jato no STF, para defender que a jurisprudência precisava ser alterada. Barroso já preparava seu voto, mas aguardava um bom caso para levar a plenário. Teori, que viria a falecer um ano e meio depois em um acidente aéreo, concordou que era preciso rever o entendimento. Um tempo se passou e ele foi a Barroso dizer que havia encontrado o caso ideal: um habeas corpus "low profile", que não tratava de ninguém conhecido. "Você se importa que eu leve?", perguntou Teori. "Assim há mais chances de termos um voto a mais", brincou, com certa dose de picardia. Ele se referia ao ministro Gilmar Mendes, que já naquela época se desentendia com Barroso e, talvez por isso, concordaria mais facilmente em acompanhar uma mudança proposta por Teori como relator. Barroso riu e respondeu que não se importava.

No dia 17 de fevereiro de 2016, em um habeas corpus pautado por Teori, o STF alterou o entendimento que prevalecia desde 2009 e passou a admitir a prisão em segunda instância. O placar, de sete votos a quatro, contou com o voto favorável de Edson Fachin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, além de Barroso e Teori. Ficaram vencidos Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello, para quem a prisão só poderia ocorrer com o trânsito em julgado da condenação. Mais tarde, no julgamento do habeas corpus de Lula, alguns ministros mudariam de lado.

Criminalistas acusam o STF de ter restringido direitos com uma "interpretação criativa" de um dos princípios mais preciosos da Constituição, que diz, com todas as letras: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." Barroso rebate. "De 1941 a 2009, sempre se entendeu que podia [a prisão em segunda instância]."

Já ao tomar posse, o ministro declarou que as instituições tinham que estar atentas a demandas sociais. Hoje ele tem dito em palestras que o Judiciário precisa "obedecer o sentimento social filtrado pela razão". Essas declarações levaram críticos a acusá-lo de populismo judicial, ou até a tecerem comparações mais extremas com juristas do nazismo. Barroso diz que a questão está mal explicada: "Em matéria de direito penal não existe criatividade judicial contra o réu, muito menos ouvir clamor público, seria um absurdo."

"Não acredito em exacerbação do direito penal e muito menos em vingadores mascarados"

Para explicar a que se refere com "escutar o sentimento social", ele traça o itinerário decisório de um juiz constitucional - mas não de um juiz criminal, faz questão de frisar. Primeiro: toda decisão judicial precisa se referir a uma norma jurídica, constitucional ou legal. Segundo: toda decisão deve observar os valores e direitos fundamentais previstos na Constituição, que protegem as pessoas contra as maiorias. Superadas as duas primeiras, a terceira regra que propõe é que o juiz deve produzir a solução que melhor atenda aos interesses da sociedade. "Aí é legítimo tentar auscultar o sentimento social, porque numa democracia todo poder é exercido em nome e no interesse da sociedade." As supremas cortes, diz, "se alinham com os sentimentos das maiorias e isso as capitaliza para, nas raras situações em que precisam, poderem ser contramajoritárias."

No STF de hoje, Barroso quase sempre vota alinhado com Fachin, Fux, Cármen Lúcia e, em geral, Rosa Weber. Corrente oposta é formada por Gilmar, Toffoli e Lewandowski. Alexandre de Moraes, Marco Aurélio e Celso de Mello costumam flutuar entre os dois grupos. Basta que um deles vote com a primeira corrente, muitas vezes liderada por Barroso, para que ela se torne majoritária.

Outra razão que levou o ministro aos holofotes é o contraponto que passou a fazer com o arguto Gilmar, a quem chegou a chamar de "pessoa horrível". Indagado sobre o episódio, aponta uma inevitabilidade. "Se as pessoas acham que eu fico feliz com momentos de confrontação, estão enganadas."

Diagnosticado com um câncer de esôfago, grau três, em agosto de 2012, Barroso ouviu do médico que teria no máximo um ano de vida. Dando como certo que já ia embora, diz que ficou triste, mas sem revolta. "Estava tão bom..." A única coisa que o preocupava de fato era o filho caçula, então com 13 anos, "novo demais para ficar sem pai".

Passou a receber livros religiosos de todas as partes - espiritualidade oriental, espiritismo, judaísmo, catolicismo, livros evangélicos... Juntou tudo e foi para Paris, onde passou uma semana trancado, lendo. Submeteu-se a quimioterapia, radioterapia, homeopatia, acupuntura e uma cirurgia espiritual com o médium João de Deus, a quem foi apresentado pelo então presidente do STF, Carlos Ayres Britto, seu amigo. Voltou ao médico, fez os exames, e o câncer tinha desaparecido. Questionado a qual tratamento atribui a cura, ele responde haver "coisas na vida que não precisam ter uma autoria totalmente definida." Depois de ver a morte de perto, passou a se abalar somente com questões realmente graves. "Tudo ficou muito mais leve."

Na juventude, além de jogar vôlei, Barroso sonhava ser compositor. Chegou a conquistar o segundo lugar no Festival da Canção Sul-Fluminense, com a música "Bons Amigos". Largou a música e o esporte ao passar no vestibular. Nas comemorações entre amigos, ainda gosta de cantar canções como "My Way", de Frank Sinatra, e "Deslizes", de Fagner. Dizem que, desde que virou ministro, a plateia passou a preterir os advogados que com ele rivalizam nas cantorias.

Barroso acorda todos os dias às 7h da manhã e medita na cama. Passa as manhãs lendo sobre assuntos variados. À tarde, vai ao Supremo. De noite, gosta de tomar vinho e assistir a séries na TV com a mulher - com quem uniu os laços tendo Luiz Fux como juiz de paz e, mais recentemente, celebrou um "recasamento" conduzido por Ayres Britto.

Barroso não pretenderia ficar muito mais de uma década no STF, é o que se comenta no tribunal. Sua intenção seria deixar a cadeira logo após cumprir seu turno na presidência, que assume daqui a seis anos. Indagado, ele desconversa: "Falta muito tempo para eu me comprometer ainda."

Ele lembra, porém, que durante a Assembleia Constituinte defendeu que ministros do STF deveriam cumprir de 10 a 12 anos de mandato, a exemplo do que ocorre em algumas cortes europeias, como a alemã. Parou de insistir no assunto para não prejudicar a consolidação do modelo atual, que prevê que o cargo é vitalício, com aposentadoria aos 75 anos. O ministro faz um paralelo entre a proposta do mandato e o que ouvira de um professor da faculdade de Direito: de década em década, um docente deve jogar fora todos os seus planos de aula e se obrigar a pensar em tudo outra vez.