Valor econômico, v.19 , n.4531 , 23/06/2018. Brasil, p. A2

 

Apenas 1% das multas aplicadas pelo Cade são usadas para reparar danos 

Lucas Marchesini

23/06/2018

 

 

Apenas 1% dos mais de R$ 2 bilhões arrecadados com multas impostas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e outros órgãos públicos desde 2012 tiveram como destino a reparação de danos causados aos direitos difusos, como previsto pela lei. A quase totalidade dos recursos foi usada para "engordar" o resultado primário até 2013 e a abater parte do déficit nos exercícios seguintes.

Isso significa que projetos de combate à exploração sexual, de preservação do ambiente e da promoção dos direitos do consumidor em pequenas cidades, dentre outros, não tiveram recursos repassados pelo governo apesar de terem sido apontados como prioritários pelo Conselho Gestor do Fundo de Direitos Difusos (FDD).

O aterro sanitário de Itapetininga (SP) é um exemplo de como a prática afeta diretamente a vida da população. O lixão foi desativado e coberto com uma camada de solo argiloso pela prefeitura por conta das exigências da Lei de Resíduos Sólidos. Apesar disso, o chorume gerado no local começou a vazar para uma lagoa próxima, contaminando a água e o solo. Por conta disso, uma empresa recebe R$ 220 mil por ano para retirar 600 mil litros de chorume por mês da lagoa.

O problema poderia ter sido resolvido em 2014, quando o conselho curador do FDD decidiu destinar R$ 390 mil para encerrar o aterro sanitário. O convênio não foi fechado devido ao contingenciamento de recursos do fundo. O FDD é de natureza contábil, ou seja, os recursos não estão financeiramente apartados na conta única do Tesouro. Os valores revistos para gastos pelo fundo podem ser cortados quando a União precisa economizar.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Valor obteve a lista de projetos prioritários que não foram conveniados devido ao corte de gastos desde 2012. Na lista estão projetos de combate ao trabalho escravo no Tocantins e no Pará e de proteção ao ambiente na Amazônia, entre outros. De acordo com o relatório de gestão do FDD, 136 projetos foram definidos como prioritários entre 2012 e 2017, no período, mas apenas 54 foram executados.

O FDD é vinculado ao Ministério da Justiça e que tem como objetivo atuar "na recuperação de bens, na promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo", como aponta a lei que o rege. A maior parte da sua arrecadação vem das multas e contribuições impostas pelo Cade. Em 2016, dos R$ 775 milhões que entraram no FDD, R$ 694 milhões vieram de punições aplicadas pela autoridade antitruste. O restante vem, por exemplo, de multas impostas pela Justiça.

Com o aumento de casos julgados pelo Cade, cresceram os recursos que entraram no FDD. Eles passaram de R$ 57 milhões em 2012 para R$ 694 milhões em 2016. No período, o FDD recebeu R$ 2,040 bilhões. O repasse de recursos para projetos de reparação de danos difusos não tiveram a mesma trajetória. O FDD destinou R$ 3,4 milhões a projetos em 2012. Em 2016, foram pagos R$ 600 mil. Entre 2012 e abril de 2017, foram R$ 21,1 milhões. O restante, R$ 2,019 bilhões, ficou com a União.

As multas que empresas pagam por terem participado de cartéis, por exemplo, acabam não servindo à reparação dos danos causados à sociedade pelo crime. O problema é apontado no relatório de gestão do FDD. "O contingenciamento financeiro sistemático ano após ano vem reduzindo o número de projetos apoiados, que está aquém do ideal tomando-se por base a relação entre recursos aplicados e arrecadação do fundo", diz o documento.

Quando o Conselho Gestor do FDD seleciona projetos, ele elabora uma lista de iniciativas prioritárias. Alguns projetos são executados, outros são vítimas do contingenciamento e não recebem nenhum recurso. Procurado, o Ministério da Justiça e o FDD não quiseram se pronunciar.

O professor de direito da Universidade de Brasília (UnB), Othon de Azevedo Lopes, acredita que esse é um artifício encontrado pelo governo para burlar a obrigação de gastos do FDD. "A obrigação de gastos existe, mas é burlada. O contingenciamento é artifício para burlar a obrigatoriedade."

O Ministério do Planejamento ressaltou que "os recursos não utilizados pela unidade durante o exercício financeiro não deixam de constituir patrimônio do Fundo, sendo contabilizados como superávit financeiro do FDD apurado no balanço patrimonial do ano anterior". Esse estoque "não se confunde com o orçamento anual, que é fluxo, elaborado ano a ano, com base nas receitas previstas e despesas fixadas".