Valor econômico, v.19 , n.4532, 26/06/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Novo código florestal e (in)segurança jurídica

Ana Claudia La Plata de Mello Franco 

26/06/2018

 

 

Passados mais de três meses do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e de constitucionalidade que questionavam vários dispositivos do novo Código Florestal, em que pese ainda não ter sido divulgado o acórdão e tampouco a maioria dos votos dos ministros, paira no ar uma sensação de que todos os problemas teriam sido solucionados com o advento da decisão e que, finalmente, o diploma legal em questão estaria apto a produzir plenamente os seus tão aguardados efeitos.

Não é a nossa intenção acabar com o clima de otimismo oriundo do julgamento, porém, não nos passou despercebido o posicionamento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da aplicabilidade da Lei Federal 12.651/2012, que em nosso sentir - e aqui se faz uma provocação à reflexão - ainda coloca em risco a efetividade do mencionado diploma, mesmo apesar do reconhecimento de sua constitucionalidade em termos gerais.

Em dois julgamentos recentes, realizados após a decisão do STF (AGInt no REsp nº 1.544.203MG e AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.211.974-SP), a 2ª Turma do STJ reiterou o seu entendimento no sentido da "inaplicabilidade de norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa jugada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais".

No primeiro caso mencionado acima (AgInt no REsp nº 1.544.203-MG), impediu-se a aplicação do artigo 66, §§ 5º e 6º da Lei Federal 12.651/2012, relativo à compensação da reserva legal em área equivalente, no mesmo bioma; no segundo caso (AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.211.974-SP), afastou-se a aplicação do artigo 62 da mesma lei, que havia sido invocado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para reconhecer que as interferências realizadas pelo réu incidiram em uma área não mais considerada de preservação permanente nos termos da nova lei.

O posicionamento em questão, exarado em ambos os precedentes citados, por certo revela que, apesar da constitucionalidade em termos gerais dos dispositivos legais questionados no âmbito do STF, prossegue entendendo o STJ que a Lei Federal 12.651/2012 não pode retroagir para prejudicar atos jurídicos perfeitos, direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada.

Visto isso, e não havendo dúvidas quanto ao conceito de coisa julgada (artigo 6º, § 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB), o problema efetivamente surge quando se analisa a questão sob o prisma do que se consideram "atos jurídicos perfeitos" e "direitos ambientais adquiridos".

Uma interpretação descuidada desses conceitos, desvinculada dos fatos que são objetos da causa, como tem sido feita, salvo melhor juízo, pelo STJ, a nosso ver, implica um risco evidente à efetividade da aplicação do novo Código Florestal.

Com efeito, o entendimento dos ministros, especialmente nos dois julgados mais recentes acima citados, é o de que os direitos assegurados pela Lei Federal 4.771/1965 (Código Florestal anterior) caracterizam-se como "direitos ambientais adquiridos", de modo a impedir a aplicação da nova lei. Para eles "em matéria ambiental deve prevalecer o princípio "tempus regit actum", de forma a não se admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos" (AGInt no REsp nº 1.544.203-MG).

Atente-se para o fato de que, em ambos os precedentes, não se está a tratar do tema sob o aspecto da constitucionalidade, o que de fato violaria a decisão do STF, mas, sim, sob o aspecto da irretroatividade, amparada pela LINDB e inserida no âmbito de competência de análise do STJ.

Não bastasse isso, o STJ ainda fundamenta a irretroatividade na aplicação do princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos socioambientais, princípio este que, ao que tudo consta, teve sua aplicação afastada pela maioria dos votos dos ministros do STF, no que tange aos aspectos atrelados à análise de constitucionalidade.

Nesse contexto, seria arriscado dizer, hoje com fundamento no artigo 927 do Código de Processo Civil, que a utilização desse mesmo princípio para fundamentar a irretroatividade da nova lei violaria a decisão proferida pelo Supremo, tendo em vista a divergência das abordagens. Deve-se considerar, também, que o posicionamento atual do STF é no sentido de que a eficácia erga omnes e vinculante, em controle concentrado de constitucionalidade, restringese à parte dispositiva da decisão, deixando de alcançar seus fundamentos centrais (ratio decidendi).

Sendo assim, se o STJ mantiver o posicionamento ora analisado, no sentido da aplicação do princípio tempus regit actum, há um sério risco de ocorrer a perpetuação da judicialização do tema da aplicabilidade da Lei Federal 12.651/2012, ainda mais tendo em vista que, em grande parte dos Estados, sequer se iniciou a fase de validação das informações fornecidas no âmbito do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que evidentemente afeta a segurança jurídica que se esperava obter com as decisões no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade e, também, em certa medida, o alcance dos objetivos perseguidos pela referida lei, em especial, no âmbito no cumprimento das metas estabelecidas no Acordo de Paris (no caso do Brasil, essas metas incluíram, entre outras, a restauração e reflorestamento de 12 milhões de hectares de florestas, até 2030).