Correio braziliense, n. 20359 , 16/02/2019. Mundo, p. 12

 

Muro da discórdia

16/02/2019

 

 

O presidente Donald Trump deu ontem o passo esperado para uma nova queda de braço com o Congresso, mal superado o impasse que manteve o governo federal parcialmente paralisado por 35 dias, na virada do ano. Conforme o que tinha anunciado na véspera, ele sancionou o orçamento aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados, após acordo fechado pelos líderes do Partido Republicano (governista) e da oposição democrata. O presidente confirmou, porém, a decisão de decretar “emergência nacional” na fronteira com o México, mecanismo que lhe permite requisitar as verbas necessárias para construir um sistema de muros e barreiras.
O projeto orçamentário votado reserva US$ 1,4 bilhão para a iniciativa, proposta central de Trump na campanha pela Casa Branca, em 2016. Com a emergência, ele poderá contornar a resistência do Legislativo e alocar os US$ 5,7 bilhões que reclama para a obra. A manobra, no entanto, foi questionada no mesmo dia por autoridades da Justiça e tem grandes chances de desembocar em prolongada batalha nos tribunais.
“Temos uma invasão de drogas, uma invasão de gangues, uma invasão de gente, e isso é inaceitável. Todo mundo sabe que os muros funcionam”, afirmou o presidente à imprensa, durante entrevista coletiva convocada de improviso nos jardins da Casa Branca. A declaração de emergência autoriza o presidente, em tese, a desbloquear recursos sem depender de aprovação do Congresso. A medida costuma ser usada para responder a catástrofes ou custear projetos e operações de defesa.
O próprio Trump espera que o decreto seja objeto de contestação judicial. Prontamente, a procuradora-geral do estado de Nova York, Letitia James, advertiu que a decisão vai gerar “uma nova crise constitucional” — e que, por essa razão, vai recorrer contra ela. Desde a véspera, quando a Casa Branca antecipou a iniciativa do presidente, críticas partiram dos meios políticos, tanto dos adversários quanto de republicanos que se empenharam na costura do acordo sobre o orçamento.
Os líderes democratas no Congresso reagiram imediatamente à declaração de Trump. A deputada Nancy Pelosi, presidente da Câmara, que começou o ano legislativo sob controle da oposição, publicou comunicado conjunto com o líder do partido no Senado, onde os republicanos mantêm a maioria. “A declaração ilegal do presidente sobre uma crise que não existe violenta gravemente a Constituição e torna os EUA um país menos seguro, ao roubar recursos urgentemente necessários de Defesa, destinados à segurança dos nossos militares e da nação”, diz o texto.
A argumentação do governo seguiu a linha traçada na véspera pela porta-voz de Trump, Sarah Sanders, que lembrou a campanha eleitoral do então candidato republicano, em 2016. “O presidente, uma vez mais, trata de honrar a promessa de construir um muro e proteger a nossa fronteira”, disse Sanders. Mas não apenas a oposição viu no gesto um “truque” ao qual um presidente enfraquecido recorre para “driblar” o Congresso. Mesmo na bancada republicana, o apoio não foi unânime. “Declarar emergência nacional nesse caso seria um erro”, opinou a senadora Susan Collins. O líder da maioria governista na Casa, Mitch McConnell, um dos fiadores do acordo, também recebeu com reservas a opção de Trump pelo decreto.
“Ilegítimo”
As críticas a Trump extravasaram dos meios politicos de Washington para organizações sociais e setores acadêmicos. “Que vergonha para qualquer membro do Congresso que não se oponha clara e vigorosamente a esta invocação ilegítima de uma emergência nacional”, manifestou-se a poderosa União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).
Em artigo publicado no jornal The New York Times, o jurista Peter Schuck, professor emérito da prestigiada Universidade de Yale, defendeu que o Congresso defina com maior rigor as condições nas quais o chefe do Executivo pode invocar a lei de 1976 sobre as emergências — usada recemente, entre outras ocasiões, por George W. Bush na resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001. “O fato de que um presidente possa usar esse poder para desperdiçar bilhões de dólares em uma promessa boba de campanha é, por si, revoltante”, escreveu Schuck. “A longo prazo, porém, definir esses limites é algo muito mais crucial para a nossa democracia do que saber se Trump, afinal, conseguirá construir o seu muro.”
“Temos uma invasão de drogas, uma invasão de gangues, uma invasão de 
gente, e isso é inaceitável. Todo mundo sabe que muros funcionam”
Donald Trump, presidente dos Estados Unidos
"A declaração ilegal do presidente sobre uma crise que não existe violenta gravemente nossa Constituição e torna os Estados Unidos um país menos seguro”
Comunicado da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e do líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer
Análise da notícia
Bloco do eu sozinho
Silvio Queiroz
Para além de uma disputa potencial entre os poderes da República, algo por si espinhoso em um país onde a Constituição define em termos claros as atribuições de cada um, é uma faceta peculiar de Donald Trump que emerge nesse novo round da batalha em torno do muro na fronteira mexicana. Ao lançar mão da emergência nacional para se sobrepor ao orçamento votado pelo Congresso, o presidente atropela os próprios líderes do governo no Legislativo.
O sinal emitido da Casa Branca sugere que Trump começa a segunda metade do mandato com os olhos voltados para 2020, quando lutará pela reeleição — e subordina as conveniências da política cotidiana à urgência do apelo direto à sua base de votos. Enquanto senadores e deputados se reacomodam, após a batalha travada nas urnas em novembro passado, o presidente volta a correr em faixa própria, como fez ao avançar como um trator nas primárias republicanas de 2016.