O globo, n. 31291, 09/04/2019. País, p. 10

 

Da China à política interna, Mourão soma contrapontos a Bolsonaro

Bernardo Mello

09/04/2019

 

 

Vice mostra descompasso com presidente em falas e tropeça ao se comparar a paraquedas: ‘Estou com ele e não abro’

Mourão levou ‘bronca’ de Bolsonaro após repercussão negativa de frases na campanha

Escolhido como vice na chapa de Jair Bolsonaro depois que outros nomes não emplacaram, Hamilton Mourão coleciona declarações que fazem contraponto a posições do presidente —algo raro no entorno de Bolsonaro, que costuma ter defensores fervorosos entre seus três filhos e aliados. O vice costuma negar que se porte de maneira antagônica ao chefe intencionalmente —no sábado, por exemplo, definiu sua atuação como “complementar” à de Bolsonaro.

Mourão chegou a cometer um ato falho ao defender ontem sua lealdade durante viagem aos EUA, cujo roteiro foi criticado por bolsonaristas. General da reserva, o vice brasileiro buscou uma analogia militar para reafirmar seu apoio ao presidente, ex-integrante da Brigada de Paraquedistas no Exército. Ao fazer uma metáfora de sua relação com Bolsonaro, Mourão tropeçou ao usar uma expressão que indica justamente uma falha de equipamento.

—Eu estou que nem um paraquedas com ele. Estou com ele e não abro.

Os desencontros nas declarações de presidente e vice vêm desde a campanha, mas não deixaram de ocorrer no governo. Na última semana, Bolsonaro corrigiu Mourão publicamente sobre a articulação do governo no Congresso.

O vice declarou, na quarta-feira, que o presidente poderia oferecer cargos a partidos para formar uma base aliada no Congresso. Para Mourão, era “óbvio que eles vão ter algum tipo de participação, seja em cargos nos Estados, algum ministério ou algo do gênero”, em caso de apoio a Bolsonaro. Após se reunir com lideranças partidárias, o presidente negou que tivesse oferecido cargos e cutucou Mourão.

—Ninguém falou em cargo ontem (quinta). No dia anterior, o vice falou em cargo, não aconteceu. Matamos no peito —afirmou.

Durante a campanha, Mourão foi desautorizado por Bolsonaro após algumas de suas entrevistas ganharem repercussão negativa. O então candidato a vice-presidente chegou a afirmar que o brasileiro havia herdado “a indolência do índio” e “a malandragem do negro”. Também fez críticas ao 13º salário e citou a possibilidade da convocação de uma Assembleia Constituinte formada por “notáveis”. À época, Bolsonaro definiu os posicionamentos do vice como “caneladas” e tentou tirá-lo dos holofotes.

Na política externa, os dois divergiram sobre a relação com a China e, nas visitas aos Estados Unidos, tiveram agendas diferentes. Mourão participou da Brazil Conference, promovida pelas universidades de Harvard e do MIT, e se reuniu com pensadores associados à oposição a Bolsonaro, como Roberto Mangabeira Unger, ex-ministro de Lula e guru ideológico de Ciro Gomes:

—Estou aqui autorizado pelo presidente. Este assunto foi despachado com ele no final de janeiro, início de fevereiro, e ele me autorizou a comparecer —frisou.

Quando foi aos EUA, no mês passado, Bolsonaro se reuniu com nomes ligados a Donald Trump, como seu ex-estrategista eleitoral Steve Bannon, e também participou de um jantar com o ideólogo Olavo de Carvalho. Bannon e Carvalho já criticaram Mourão e acusaram-no de tentar criar um “novo centro de poder” dentro do governo. Mourão já havia causado estranheza em aliados de Bolsonaro ao receber sindicalistas da CUT, normalmente criticada pelo presidente, para debater detalhes sobre a Reforma da Previdência.

A viagem de Bolsonaro a Israel abriu outro contraponto do vice ao presidente. Bolsonaro classificou, em visita ao Memorial do Holocausto, que o nazismo foi um movimento de esquerda. Perguntado sobre o assunto, Mourão disse que “de esquerda é o comunismo”.

Posse de armas

Em alguns episódios, Mourão tentou conter eventuais danos de posições mais incisivas de Bolsonaro. Em janeiro, bem antes do recuo do presidente em relação à transferência da Embaixada do Brasil em Israel, o vice já declarava que o governo não levaria a representação de Tel Aviv para Jerusalém, numa tentativa de acalmar países árabes.

Mourão também foi um dos poucos membros do governo a manifestar solidariedade ao ex-deputado Jean Wyllys (PSOL), que renunciou ao mandato alegando preocupação com sua segurança. Em suas falas com aparentes contrapontos a Bolsonaro, Mourão chegou a se distanciar do apelo do presidente ao uso de armas de fogo pela população. Após flexibilizar a posse de armas por decreto, Bolsonaro definiu a medida como forma de “iniciar o processo de assegurar o direito inviolável à legítima defesa”. Mourão, embora não tenha confrontado o presidente, opinou que Bolsonaro pregava para convertidos:

—Não vejo como questão de medida de combate à violência. Vejo apenas, única e exclusivamente, como atendimento da promessa de campanha do presidente.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Agricultura: Comissão apura conflito de interesses

Vinicius Sassine

09/04/2019

 

 

Órgão da Presidência vai apurar se nomeação de secretária que atuou contra demarcações de terras indígenas infringe a ética

A Comissão de Ética Pública da Presidência da República abriu um procedimento para apurar se a secretária-adjunta de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luana Ruiz Silva de Figueiredo, incorre em conflito de interesses e em infração ética no exercício do cargo. O processo foi aberto pelo colegiado, que é vinculado ao presidente Jair Bolsonaro, com base em reportagem publicada ontem pelo GLOBO.

A reportagem revelou a atuação de Luana em processos e recursos contra populações indígenas. Com atuação em 16 ações e em quase 50 recursos na Justiça que buscam de alguma forma impedir novas demarcações de terras indígenas, a advogada foi colocada no cargo de secretáriaadjunta exatamente para cuidar de novas demarcações de terras indígenas.

“Diante da notícia publicada no jornal O GLOBO de 7 de abril, a Comissão de Ética Pública deu início a procedimento destinado à apuração de ocorrência de ato caracterizador de conflito de interesses e infração ética, determinando a manifestação de Luana Ruiz Silva de Figueiredo, em observância à garantia constitucional do contraditório”, afirmou em nota o presidente da comissão, Paulo Henrique Lucon. Ele assumiu a presidência do colegiado no último dia 12.

Número 2 do Ministério

A lei de conflito de interesses prevê até a demissão do servidor. Outras penalidades ficariam a cargo de eventuais processos administrativos disciplinares ou ações de improbidade administrativa, caso sejam instaurados. A decisão sobre punição ou sobre arquivamento é colegiada, a cargo dos conselheiros que integram a Comissão de Ética.

Luana é, desde 25 de janeiro, a número dois da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários. A secretaria passou a ser responsável por novas delimitações de áreas para populações indígenas.

O nome de Luana aparece como advogada de produtores rurais em Mato Grosso do Sul que buscaram a Justiça Federal para pedir a retirada de indígenas de terras que consideram privadas, para tentar se manter em territórios demarcados e para contestar atos de demarcação, além de outras demandas que buscam evitar a destinação de áreas a comunidades tradicionais. Entre os clientes está a Federação da Agricultura e Pecuária do estado (Famasul). Parte das ações contesta atos da Funai.

Além disso, os pais da secretária-adjunta são produtores em Mato Grosso do Sul e estão em situação de conflito com comunidades indígenas da região. A advogada diz que, assim que assumiu o cargo, protocolou nos processos em curso na Justiça Federal a transferência das defesas para outros advogados. Segundo Luana, seu nome ainda aparece nos processos porque as varas responsáveis ainda não processaram a atualização. A secretária-adjunta afirma também que comunicou o caso da família — que tem “terras invadidas por índios”, segundo ela — à Comissão de Ética Pública.

Antes de chegar ao cargo, porém, Luana teve forte atuação na fase de transição do governo. Ela participou das discussões sobre a transferência da atribuição de novas demarcações da Funai para o Ministério da Agricultura. Ao mesmo tempo, advogava para produtores rurais contra iniciativas que pudessem ser benéficas aos índios.

Para o Ministério da Agricultura, o fato de ser produtora rural e defender que invasão é crime não configura conflito de competência na atuação como secretária-adjunta. A pasta sustenta que Luana está apta para o exercício do cargo, a partir do momento em que deixou as defesas nos processos na Justiça e comunicou a Comissão de Ética Pública da Presidência sobre a situação da família.