Valor econômico, v.19 , n.4507, 21/05/2018. Especial, p. A12

 

Cidades 'capturam' alunos de fora para receber verba maior 

Lucas Marchesini

21/05/2018

 

 

O Centro de Ensino Fundamental Vendinha fica no Distrito Federal, mas atrás do muro dos fundos que delimita a escola já é Goiás, mais especificamente o município de Padre Bernardo. O resultado prático é que 99% dos 640 alunos da Vendinha moram em Goiás e estudam no Distrito Federal.

Para chegar até a escola, alguns vão a pé. Outros, como Abraão, Cauan, Deivid, Gustavo e Thiago chegam de bicicleta - o Valor contou mais de 50 delas na entrada da escola quando visitou o local. Um ônibus busca os alunos que moram mais longe. O transporte, assim como todo o resto no colégio, é custeado com recursos do governo do Distrito Federal e do Ministério da Educação. Apesar da esmagadora maioria dos estudantes morar em Goiás, o Estado não arca com nenhuma das despesas da Vendinha, mas conta as matrículas a seu favor. A distribuição das verbas que custeiam o ensino básico é feita com base nisso.

A situação é comum em regiões de divisa. Um levantamento do Valor com base em dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) revela que pelo menos 1,8 milhão de alunos moram em um município diferente daqueles onde estudam. Desses, 1,2 milhão estudam em escolas públicas. O número pode ser maior, porque o Censo Escolar não traz os dados do município de residência para 14,8 milhões de alunos.

Esses estudantes estão no centro de uma disputa entre municípios para captar alunos que morem em regiões de divisa. O caso mais comum é o fornecimento de transporte para os alunos que moram em outra cidade. A prática não é ilegal, mas é considerada antiética pelo presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Aléssio Lima.

"Deveria ter questão ética, não deveria viabilizar transporte para trazer o aluno até o seu município. Isso no campo ético, porque do ponto de vista legal nada impede", disse Lima.

Ele, que também é secretário de Educação em Alto Santo (CE), cidade a 246 km de Fortaleza, relata casos em que escolas oferecem brindes como mochilas e cadernos para seduzir alunos de outras cidades.

O objetivo é conseguir mais recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal mecanismo de financiamento da educação fundamental e média pública no Brasil. Isso porque o fundo é composto por uma parte da arrecadação de uma cesta de impostos de Estados e municípios e uma complementação da União.

Cada Unidade federativa tem um fundo e os recursos amealhados são em seguida redistribuídos para as prefeituras a partir do número de alunos em cada colégio. Assim, ter alunos de outra cidade é uma maneira de atrair mais dinheiro do Fundeb.

"Para quem é gestor isso gera enormes problemas, trazendo transtornos não só para o município, mas também para o próprio aluno. O município acaba assumindo algumas responsabilidades por esse cidadão onde ele reside, como serviços na área de saúde, família e outros mais, mas quando chega na educação, recurso é subtraído por ele estudar no município vizinho", explicou Lima.

Por isso, a situação é agravada quando a linha separa também unidades federativas, como é o caso do CEF Vendinha. Nesse caso, todo imposto gerado pela família dos estudantes no local onde moram, no município de Padre Bernardo, fica com Goiás e ajudam a financiar a educação no Estado. Entretanto, a educação desses estudantes é paga pelo Distrito Federal.

A secretária de Educação do Mato Grosso do Sul e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Cecilia Motta, considera nociva a situação. "Muito ruim isso [a disputa], o poder público ficar dividindo aluno. Não acho que isso seja saudável, porque fica complicado para a própria direção da escola", aponta.

Ela revela que existe a disputa também entre municípios e Estados para ver quem fica com o aluno. "O ideal, e já existem experiências de sucesso, é que municípios assumissem a educação infantil e fundamental 1 e Estados ficassem com fundamental 2 e o ensino médio. Isso acabaria com disputa entre Estado e município", propõe.

Existem diversas razões para que uma pessoa more em uma cidade e estude em outra. "Em regiões metropolitanas, o aluno muitas vezes se vê seduzido a estudar na capital. É muito mais psicológico, porque condição de financiamento de uma escola na capital e em município vizinho é idêntico", aponta Lima. Além disso, prossegue ele, "os grandes centros urbanos tem mais oferta de trabalho", o que leva a uma conjugação do local de trabalho do estudante ou dos pais do aluno com a escola onde estuda.

Os dados mostram que as 20 cidades com a maior diferença entre os estudantes que vivem e estudam no município estão em grandes regiões metropolitanas, não necessariamente de capitais. Em Colombo (PR), cidade próxima de Curitiba com 237,4 mil habitantes, pelo menos 6,1 mil dos 7,9 mil estudantes vão para outra cidade para estudar.

Cecilia lembra que a legislação diz que "o aluno não pode ficar mais de duas horas dentro do veículo" para chegar até a escola, mas defende "que é melhor ficar dentro do ônibus e chegar até a escola do que não estudar". "É difícil, mas tem que ir pra escola", aponta.

O levantamento do Valor revela que a maior parte dos estudantes que precisam mudar de cidade para estudar estão no Nordeste. São 753,3 mil nessa situação em toda a região, dos quais 541,3 mil estudam em instituições públicas.

Em seguida vem o Sudeste, com 493,2 mil alunos viajando para estudar, sendo 294,2 mil em estabelecimentos públicos, o Sul, com 315,9 mil estudantes na situação sendo 178,8 em escolas públicas, o Centro-Oeste (157,6 mil alunos, sendo 109,6 mil de escolas públicas) e o Norte (96,3 mil alunos, dos quais 66,6 são de escolas públicas).

Na separação por modalidade de ensino, a maioria dos alunos está no ensino fundamental. São 600,2 mil em todo o Brasil. Desse número, 378,7 está no ensino público e 221,5 mil no privado. Já no ensino médio são 275,9 mil alunos, sendo 200 mil nas instituições públicas.