Valor econômico, v.18 , n.4478, 09/04/2018. Opinião, p. A13

 

Um princípio para o gás natural 

Edvaldo Santana 

09/04/2018

 

 

Em 14 de março o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou uma portaria que contempla os denominados "dez princípios de atuação governamental no setor elétrico". São dez princípios interessantes - respeito ao direito de propriedade, meritocracia, transparência, isonomia, priorizar soluções via mercado, adaptabilidade, coerência, simplicidade, previsibilidade e respeito ao papel das instituições. Parecem óbvios, e são. Mas eu poderia listar diversas decisões, todas bem recentes, em que pelo menos três deles não foram observados.

O que mais chamou a atenção de alguns analistas foi o fato de os princípios serem válidos apenas para a energia elétrica, sendo desprezado, por exemplo, o segmento de gás natural, tão necessitado de alguma racionalidade, por menor que seja. Falei sobre isto aqui no Valor em 11 de novembro passado. Infelizmente, do ponto de vista do arcabouço regulatório, as coisas só pioraram nos últimos 120 dias, o que poderá frustrar os objetivos de uma nobre iniciativa do governo, denominada de Gás para Crescer. Ou seja, frustrar a esperança de alguma melhora.

Cito aqui alguns exemplos da irracional regulação do setor gás natural. Em 29 de dezembro de 2017 e em 30 de janeiro de 2018, a agência reguladora do Espírito Santo emitiu duas decisões que implicam, respectivamente, aumentos de 11,75% e 7,57% no custo do gás. Para justificar tal aumento, o regulador utiliza dois argumentos simbólicos. No primeiro deles, a agência simplesmente diz que a Petrobras Distribuidora, que é a concessionária local, requereu o reajuste da tarifa. No outro, repleto de mais simbolismo, o regulador diz que "o contrato de fornecimento entre a Petrobras e a Petrobras Distribuidora contempla a metodologia para aumentar a tarifa".

Em resumo, o fundamento para o reajuste do preço do gás natural é um contrato entre empresas do mesmo grupo econômico, o que costuma ser chamado de "contrato Zé-com-Zé". E tem mais: os consumidores, que pagam a conta, são proibidos de acessar tal metodologia do referido contrato. A cláusula seria sigilosa. Não sei se perceberam, mas em um só caso vários dos princípios listados pelo MME foram jogados no lixo, sendo os mais evidentes o da transparência, coerência e previsibilidade.

Tenho outro exemplo ainda mais sintomático: em fevereiro passado a agência reguladora do Rio de Janeiro colocou em consulta pública a revisão tarifária da concessionária de gás local, o que, de maneira geral, seria um fato positivo. Porém, ao se analisar os documentos disponíveis para contribuições, percebe-se que não há qualquer posicionamento do regulador sobre a proposta da distribuidora. O regulador é taxativo ao dizer que só se manifestará depois das contribuições da sociedade.

Parece não haver grande problema nisso. Mas há. Os consumidores, por exemplo, não têm como fazer uma análise qualificada e precisa, porque as memórias de cálculo, que fazem parte dos anexos da proposta da distribuidora, não podem ser por eles acessadas. Para a agência do Rio, "os anexos da proposta estão amparados em cláusulas de confidencialidade constantes do contrato de concessão". Dessa maneira, os valores apresentados pela concessionária não têm como ser reproduzidos pela sociedade, dada, novamente, a falta de transparência.

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) não foge muito desse paradigma, infelizmente. A agência tem uma resposta padrão quando é requisitada cópia de um contrato de fornecimento de gás. Uma de suas resoluções estabelece que a ANP não divulgará quaisquer informações comerciais constantes de contratos, salvo se elas forem agregadas. Em outras palavras, a Agência impôs para si uma restrição que fere a Lei de Acesso a Informações (LAI), sem contar o grave prejuízo à transparência.

As agências reguladoras, quando o assunto é o gás natural, estranhamente fogem do seu papel primordial, que é o de regular. Simplesmente não regulam. Dão de ombros. Sequer levam em conta que a falta de transparência torna ainda maiores os efeitos da assimetria de informações, potencializando o poder de monopólio ao longo da cadeia de fornecimento. Os contratos de gás, entre o produtor e a distribuidora, supostamente seguem a livre comercialização, portanto não teria razão para que o regulador neles interferisse. Contudo, as vendas das distribuidoras em suas áreas de concessão são realizadas em um ambiente regulado, o que exige regras claras para o repasse dos custos do gás para os consumidores finais. Senão, para que serve a agência reguladora?

O caso do Espirito Santo é o que melhor representa o significado atual da livre comercialização no mercado de gás. Como considerar que um contrato Zé-com-Zé foi livremente negociado? Por que, então, o regulador não estabelece um limite de repasse dos custos para as tarifas? No caso do Rio de Janeiro, por que zombar do consumidor, exigindo que analise dados e informações que são proibidos de conhecer?

O Gás para Crescer e o projeto de lei resultante procuravam resolver parte dessas situações excêntricas e singulares, que obviamente determinam o insignificante crescimento do mercado de gás. Mas a coisa não andou. E o que mais grave: surgiu uma proposta alternativa que consegue piorar o que já existe, que representei nos dois casos descritos acima. Tal proposta prevê a criação do ambiente livre, mas o subordina à regulação estadual e ao monopolista local. Ou seja, muda para manter como estar ou corre para não chegar, o que daria no mesmo.

Ora, os investimentos, nesse cenário, não acontecerão. Quem vai empregar recursos em autoprodução ou autoimportação de gás natural se corre o risco de inviabilizar o projeto com pagamentos exorbitantes, sem transparência, e por serviços não prestados? Quem apostará em aumentar o consumo de gás natural se continuará vulnerável à assimetria de informações e a uma regulação que sequer consegue ser transparente?

O MME, pela portaria que mencionei no início deste artigo, estabeleceu dez princípios para o setor elétrico brasileiro. Quem sabe destina ou ao menos empresta um mísero deles, o da transparência, para o segmento do gás natural? Resolveria um senhor problema. Marcaria um golaço.