Correio braziliense, n. 20398 , 27/03/2019. Mundo, p.12

DE VOLTA ÀS TREVAS

RODRIGO CRAVEIRO
 
 
 
 

Por meio de um comunicado oficial, Nicolás Maduro assegurou que o sistema elétrico da Venezuela sofreu “dois ataques terroristas mal-intencionados”, às 13h29 (14h29 em Brasília) e às 21h47 (hora local) de anteontem. De acordo com o presidente, um incêndio de grande magnitude na área de geração e transmissão da usina hidrelétrica de Guri levou ao colapso o fornecimento de eletricidade em 80% do território nacional. O ministro da Comunicação, Jorge Rodríguez, divulgou fotos da estação em chamas e responsabilizou os “gringos”. Pela segunda vez em menos de um mês, um blecaute paralisou 21 dos 23 estados do país petrolífero e forçou as autoridades a prolongarem por mais 24 horas, até esta quarta-feira, a suspensão das atividades laborais e educacionais.

“Seguimos trabalhando na restituição do serviço elétrico, sob a direção do presidente Maduro, que, ao avaliar a extensão dos danos causados por esse ataque terrorista e para facilitar o trabalho, ampliou a suspensão das atividades escolares e de trabalho até 27 de março”, disse Delcy Rodríguez, vice de Maduro.

Em discurso na Assembleia Nacional, o presidente autodeclarado, Juan Guaidó, afirmou que a Venezuela “amanheceu às escuras, produto de uma tragédia continuada”. O jornal El Nacional informou que colectivos (grupos armados favoráveis ao chavismo) cercaram a Assembleia Nacional, tentaram agredir deputados e lançaram artefatos explosivos contra o carro onde estava Guaidó, que não teria se ferido.

Não bastasse o caos provocado pelo mega-apagão, a presença de dois aviões militares russos em Caracas elevou a tensão. O Grupo de Lima — bloco formado por 12 nações da América Latina e pelo Canadá — manifestou preocupação e reforçou sua “condenação a qualquer provocação” capaz de ameaçar a paz regional. O ministro da Defesa do Brasil, general Fernando Azevedo e Silva, se reuniu em Washington com conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton. Na pauta, entre outros temas, a crise na Venezuela. O ministro descartou ter abordado uma eventual ofensiva militar no vizinho.

Morador de Caracas, o corretor de seguros Miguel Casiero, 51 anos, admitiu à reportagem que a sociedade venezuelana vive um estado de “incerteza absoluta”. “A única forma de obter informação é por meio das redes sociais. Alguns hospitais anunciaram um balanço de 10 mortos desde a noite passada, como no caso do Hospital Clínico Universitário de Caracas. Temos racionado a água, pois não existe bombeamento”, relatou. “Além de não podermos trabalhar e estudar, o trânsito se converteu em um completo caos. Alimentos congelados estragaram e equipamentos elétricos sofreram avarias por causa da variação de tensão. A situação é insuportável.”

Em Barquisimeto (353km a sudoeste da capital), o estudante de medicina Camilo González Roldán, 20 anos, contou que a população alternava entre o desespero e a desesperança. “Temos medo de que isso se prolongue, como o blecaute passado. Todas as escolas e escritórios públicos estão fechados. Os hospitais possuem geradores de energia, mas não gozam de abastecimento de água”, disse.

Para o cientista político José Vicente Carrasquero Aumaitre, da Universidad Simón Bolívar (em Caracas), a responsabilidade pelo blecaute recai no regime. “O desinvestimento no início do governo de Hugo Chávez e a corrupção posterior, na tentativa de recuperar o tempo perdido, levaram a um sistema elétrico que não conta com capacidade para atender à demanda do país, o qual não recebeu devida manutenção. Além disso, muitos profissionais qualificados abandonaram o país ou deixaram de trabalhar”, afirmou à reportagem.

 

Moscou

Em seu pronunciamento no parlamento, Guaidó classificou a presença de forças russas em Caracas como uma violação à Constituição. “Parece que (no governo de Maduro) eles não confiam em seus militares (...) Eles violam a Constituição novamente”, comentou. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia confirmou o envio de militares a Caracas e citou o reforço da “cooperação” entre o Kremlin e o Palácio de Miraflores, “com total respeito à Constituição daquele país e com total respeito pela legalidade”, segundo a porta-voz Maria Zakharova. Carrasquero acredita que as aeronaves de Moscou buscam transmitir a mensagem de desafio da Rússia e da Venezuela em relação aos Estados Unidos. “É preciso lembrar que a maior parte do armamento de guerra da Venezuela é de procedência russa. Ante a possível iminência de um ataque estrangeiro, os russos poderiam estar fornecendo esses equipamentos.”

 

Crise energética recorrente

As principais falhas no sistema elétrico da Venezuela nos últimos anos

 

2007

O presidente Hugo Chávez nacionaliza o setor elétrico.

 

2010

Devido à seca, o governo declara “emergência elétrica” e inicia um plano de racionamento.

 

Abril de 2011

O apagão afeta quase toda a Venezuela, após a queda de duas linhas de grande capacidade.

 

2013

Com Maduro no poder, grande parte do país fica sem fornecimento em setembro e dezembro. O governo denuncia “sabotagens”.

 

Junho de 2014

Corte na capital e em cerca de 10 estados.

 

2016

Racionamento por cortes que o governo atribui à seca.

 

Outubro de 2017

Em um contexto de apagões frequentes, uma falha elétrica atinge Zulia, um dos Estados mais castigados.

 

2018

Em janeiro e fevereiro ocorrem colapsos em Caracas e em outras regiões, repetidos em agosto, outubro e novembro. Em Zulia, o blecaute dura quatro dias.

 

2019

7 a 14 de março: o pior apagão da história do país, em 22 dos 23 estados e em Caracas. Mais de uma dezena de mortos, segundo a oposição.

 

Segunda-feira e ontem

Pelo menos 21 dos 23 estados e Caracas com falhas no sistema elétrico.

 

Povo fala

Camilo González Roldán,

20 anos, estudante de medicina em Barquisimeto (a 353km de Caracas)

“Estamos sem eletricidade desde as 8h30 de segunda-feira. Barquisimeto está com o abastecimento de água interrompido. Há escassez de combustível e enormes filas nos postos. A situação é bastante confusa. Muitos venezuelanos não têm possibilidade sequer de carregar seus celulares e de se informar sobre o que ocorre.”

 

Gabriel Chacón,

33 anos, engenheiro de computação em San Cristóbal (a 660km de Caracas)

“A guerra elétrica se chama falta de manutenção. Tenho vários parentes que trabalham na indústria elétrica e fugiram do país por não aguentarem as condições de trabalho e os salários. O governo não investiu nem fez a manutenção do sistema. Basicamente, as autoridades estavam sem fazer nada. Não se pode culpar a ninguém mais que ao próprio governo.”

 

"Parece que (no governo de Nicolás Maduro) eles não confiam em seus militares. (…) Eles violam a Constituição novamente”

Juan Guaidó, presidente autodeclarado da Venezuela, ao criticar a presença de forças russas no país

 

TUITADAS

“Cada ataque contra a tranquilidade e a estabilidade de Pátria terá a resposta contundente de um povo mobilizado, em união cívico-militar, que jamais se renderá ante nenhum império”

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela