Valor econômico, v.18 , n.4483, 16/04/2018. Especial, p. A12

 

Potências disputam supremacia no Ártico

Oki Nagai

16/04/2018

 

 

Navio quebra-gelo nuclear russo abre caminho pelo oceano Ártico, onde o degelo provocado pelo aquecimento global está abrindo novas rotas de navegação

As temperaturas estão aumentando no Ártico, tanto no sentido literal como no geopolítico.

Com o aquecimento global derretendo o gelo marinho no extremo norte do planeta, a região está se tornando uma área de desenvolvimento, com grandes potências, como Rússia e China, tentando controlar recursos e rotas de transporte. Isso cria também um foco de conflitos na área de segurança.

Em março, um grande navio carregando gás natural liquefeito (GNL) deixou a península de Yamal, na Rússia, que se projeta do noroeste da Sibéria e contém algumas das maiores reservas de gás do mundo. A embarcação estava transportando o primeiro carregamento de GNL para a Índia, através das águas do Ártico via o Estreito de Bering.

A Novatek, gigante russa do setor de energia, está produzindo GNL em Yamal. "O primeiro carregamento entregue ao crescente mercado indiano é um importante passo de desenvolvimento", disse Lev Feodosyev, primeiro vice-presidente do conselho de administração da Novatek, sobre a carga.

A mudança climática tornou isso possível.

O gelo marinho do Ártico vem encolhendo de forma consistente por causa do aumento das temperaturas médias no planeta. A cobertura máxima de gelo atingiu o menor tamanho já registrado em 2017. Até 2030, o oceano Ártico poderá estar em grande parte livre do gelo no verão, segundo o Programa de Monitoramento e Avaliação do Ártico, um grupo que trabalha sob a organização intergovernamental Arctic Council.

A tendência está abrindo novas rotas de navegação antes consideradas impossíveis, com grandes implicações econômicas e geopolíticas. Os benefícios imediatos serão períodos de transporte mais curtos. Navegar de Yamal para o Leste da Ásia leva cerca de duas semanas, metade do tempo necessário pela rota que cruza o Canal de Suez e o Oceano Índico, segundo uma pesquisa feita por empresas de navegação.

Não bastasse isso, o Círculo Ártico é muito mais do que uma vastidão estéril: a região pode conter cerca de 30% das reservas de gás não descobertas do mundo, segundo uma estimativa da U.S. Geological Survey.

A Rússia não está perdendo tempo na implementação de sua estratégia de recursos no Ártico. Em dezembro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, viajou para Yamal, que significa "fim do mundo" no idioma nativo. A temperatura se aproximava dos 300 C negativos e o céu ficava no limite da escuridão durante o dia, mas Putin pareceu estar animado em uma cerimônia de lançamento da produção de GNL.

"Uma vista fantástica", disse o presidente russo num aeroporto do vilarejo de Sabetta, no distrito autônomo de Yamalo-Nenets, onde está localizada a unidade de produção de GNL.

A Rússia está tendo uma certa ajuda em Yamal. A China está financiando parte do desenvolvimento do projeto de GNL. A China National Petroleum Corp (CNPC) tem uma participação de 20% no projeto, com 9,9% do dinheiro adicional vindo do Fundo da Rota da Seda, de Pequim.

O carvão responde por 60% do consumo de combustíveis da China, mas o país está buscando se converter para o gás natural para combater seu problema crônico de poluição do ar. Em breve, a China deverá superar o Japão como maior consumidor de GNL do mundo, o que explica porque está investindo em projetos de gás ao redor do mundo.

Para a Rússia, o projeto Yamal é apenas o começo. "A Rota do Mar do Norte será a chave para o desenvolvimento da região ártica russa e das regiões do Extremo Oriente e, até 2025, o tráfego na área vai aumentar dez vezes, para 80 milhões de toneladas", afirmou o presidente Putin sobre essa importante rota de transporte em seu discurso sobre o Estado da Nação, em 1º de março. "Nossa tarefa é transformá-la em uma artéria de passagem competitiva e verdadeiramente global."

Moscou também está lançando um segundo projeto de GNL em Yamal, chamado Arctic LNG 2, com a exploração de gás devendo começar em 2019. O governo russo pretende aumentar a produção anual total de GNL da região para 50 milhões de toneladas até 2030.

Em novembro, a Novatek e a CNPC firmaram um acordo de cooperação estratégica para o Arctic LNG 2. A Índia, que agora está importando GNL de Yamal, e a Arábia Saudita também surgem como potenciais parceiros.

A Rússia também está tentando trabalhar com um país que poderá ser prejudicado pela ascensão do transporte marítimo pelo Ártico: Cingapura.

Derretimento do gelo desencadeia corrida dos EUA, Rússia e China pelos recursos e rotas marítimas do Ártico

A cidade-Estado ergueu sua economia em torno do comércio marítimo e sentirá o impacto se um grande volume de tráfego for redirecionado. Mas a tecnologia de navegação e outras tecnologias do país do sudeste asiático interessam à Rússia, e poderá haver oportunidades de cooperação entre os dois países.

Vladimir Titov, primeiro vice-ministro de Relações Exteriores da Rússia, esteve reunido em 26 de março, em Moscou, com Sam Tan Chin Siong, ministro de Estado do Gabinete do primeiro-ministro de Cingapura, do Ministério da Força de Trabalho e do Ministério de Assuntos Externos. A cooperação no Ártico foi o principal tema da discussão.

Enquanto isso, outra potência do Ártico faz seu próprio esforço para solidificar sua posição. Em janeiro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou um plano de abertura de quase todos os territórios offshore americanos para a exploração de petróleo e gás, incluindo áreas anteriormente protegidas no Ártico. Trump rompeu claramente com a política de energia orientada para o meio ambiente de seu antecessor, Barack Obama, e passou a priorizar o desenvolvimento de recursos. Projetos de exploração de petróleo e gás no Alasca, voltado para o Ártico, devem começar em 2019.

"Queremos desenvolver o setor energético offshore de nossa nação", disse o secretário do Interior americano, Ryan Zinke, sobre a nova política, sinalizando o desejo do governo Trump de não ficar atrás da Rússia na região.

A onda de interesse internacional pelos recursos do Ártico vem despertando preocupações com a segurança. Mais uma vez, as duas superpotências militares encaram uma a outra através do oceano Ártico, e o surgimento da China como um terceiro grande agente só complica a situação.

Putin estabeleceu o comando estratégico da Frota do Norte da Marinha russa em Murmansk, cidade portuária do Ártico. "Não vamos ameaçar ninguém, mas, usando nossas vantagens, neste caso as de natureza territorial, vamos garantir a segurança da Rússia e seus cidadãos", disse Putin num documentário exibido pela TV estatal russa em março. "Quanto a isso, a região ártica é extremamente importante para a Rússia."

No fim de março, um avião antissubmarino russo voou para a América do Norte atravessando o Ártico, algo que não acontecia desde o fim da Guerra Fria. O voo criou tensões, porque os EUA e o Reino Unido conduziam explorações submarinas na ocasião. Especialistas tomaram isso como um alerta para Washington.

A China também colocou a região no noticiário. Em janeiro, o governo publicou um relatório oficial intitulado "A Política da China para o Ártico", que descreve o país como "quase um Estado ártico" e uma "parte interessada importante nos assuntos árticos". Na visão de Pequim, o que acontece na região tem um "impacto direto" sobre seus interesses.

"O uso das rotas marítimas e a exploração e desenvolvimento de recursos no Ártico poderá ter um impacto enorme sobre a estratégia de energia e o desenvolvimento econômico da China", afirma o documento.

A China tem capacidade militar para se impor. O governo chinês poderia, por exemplo, usar submarinos nucleares equipados com mísseis balísticos nas águas geladas da região.

No ano passado, o presidente da China, Xi Jinping, realizou uma série de encontros com líderes de países do norte - Rússia, Finlândia, Noruega e Dinamarca. Essas discussões foram claramente voltadas para reforçar a influência da China.

Ao anuncia a política para o Ártico, o vice-ministro das Relações Exteriores chinês, Kong Xuanyou, amenizou as preocupações com os objetivos de Pequim. "Algumas pessoas podem estar apreensivas com a nossa participação no desenvolvimento do Ártico, temendo que possamos ter outras intenções, que possamos pilhar recursos ou danificar o meio ambiente", disse Kong. "Acredito que essas preocupações são absolutamente desnecessárias."

Países cautelosos com a expansão econômica e militar da China não confiam nessas promessas. "A China ainda não anunciou qual é o principal objetivo de seus investimentos no Ártico", afirmou Yusuke Honda, pesquisador da Sasakawa Peace Foundation. "A falta de informações torna os países vizinhos suscetíveis a dúvidas e temores."

Em março, o almirante Harry Harris, chefe do Comando do Pacífico dos Estados Unidos, alertou um senador sobre as ramificações da estratégia "Rota da Seda Polar" de Pequim, afirmando que a China "claramente vê o Ártico como um alvo". Apesar de não ter territórios perto do Ártico, disse Harris, a China "está partindo para a ação em vez de ficar falando".

O Ártico não tem um tratado equivalente ao da Antártida para garantir a exploração pacífica da região

Alguns países são tentados pelo dinheiro chinês, mas temem as implicações que esses recursos representam. Em março, um consórcio chinês estava entre os finalistas para a realização de um projeto de expansão de um aeroporto na Groenlândia - país autônomo que faz parte do reino da Dinamarca.

Isso não é nenhuma surpresa. Durante uma visita à China em 2017, o primeiro-ministro da Groenlândia, Kim Kielsen, se mostrou bastante otimista com a atração de investimentos chineses. "Nossa visita à China deveria ser vista no contexto da busca de recursos para esses investimentos futuros", afirmou Kielsen em um encontro com uma autoridade de alto escalão do Export-Import Bank of China.

Mas o governo da Dinamarca, que mantém relações próximas com os Estados Unidos, manifestou preocupação com a participação chinesa no projeto do aeroporto, turvando o cenário.

O Tratado Antártico, firmado em 1959, busca regular e garantir a exploração pacífica da região no Polo Sul, mas ainda não há um equivalente para o Ártico. O Arctic Counsil - um fórum de oito países que inclui Estados Unidos, Rússia e Dinamarca - está liderando a discussão. China, Japão e Coreia do Sul participam como "Estados observadores" desde 2013.

Há alguns sinais promissores. Em 2017, dez partes, incluindo Estados Unidos, Rússia, Japão e a União Europeia (UE), concordaram com a proibição da pesca comercial no oceano Ártico central por ao menos 16 anos.

O ex-presidente da Islândia Olafur Ragnar Grimsson, hoje presidente do Arctic Circle (uma versão setentrional do Fórum de Davos), disse em fevereiro que várias instalações militares no Ártico foram fechadas. Isso, sugeriu ele, deve preparar o caminho para uma maior cooperação internacional.

Mas persistem as preocupações de que potências rivais estejam navegando em rota de colisão no Ártico. Fazê-las participar de um jogo amigável, especialmente na questão da segurança, não será fácil. (Colaborou Natsuki Kaneko - Tradução de Mario Zamarian)

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Custo do acordo sobre emissões de navios ainda é incerto

Daniela Chiaretti

16/04/2018

 

 

O acordo climático que reduzirá em 50% as emissões do transporte internacional em 2050, acertado em Londres na sexta-feira, não tem efeito imediato. Nenhum navio será proibido de entrar em algum porto nos próximos dias caso não cumpra as resoluções da Organização Marítima Internacional (OMI). Os impactos econômicos de longo prazo, contudo, ainda não são conhecidos.

"Este é o grande problema", diz Paulo Chiarelli, chefe da divisão de mudança do clima do Ministério das Relações Exteriores. "Não se sabe ainda o custo dessas decisões. Precisamos melhorar esse conhecimento."

Este foi precisamente um dos elementos introduzidos pelo Brasil no acordo. O governo brasileiro pediu à OMI estudos econômicos sobre os impactos das medidas.

"Qualquer medida para reduzir emissões deverá ter seus impactos sobre os países em desenvolvimento avaliados com antecedência, em especial considerando fatores como distância dos mercados, o tipo de carga, a segurança alimentar e o desenvolvimento socioeconômico", explicita nota do Itamaraty enviada à imprensa.

O acordo têm as decisões antecipadas pelo Valor: reduzir as emissões do setor em no mínimo 50% em 2050, fortalecer metas adotadas anteriormente de eficiência dos novos navios e reduzir em 40% as emissões por carga útil transportada em 2030 e em 70% em 2050. O ano-base é 2008, o de pico do comércio internacional. Há também um cronograma até 2023 prevendo, por exemplo, coleta de dados por navio sobre combustível usado e emissões.

Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicou que combustíveis alternativos e energias renováveis podem contribuir muito para a descarbonização do setor. Melhorias nos design dos cascos, navios maiores e mais eficientes são outras medidas que podem ajudar. O transporte marítimo responde por 2% a 3% das emissões globais de gases-estufa.

Os negociadores brasileiros também pressionaram para que o acordo incluísse o princípio das "responsabilidades comuns porém diferenciadas". O conceito, utilizado nas negociações climáticas internacionais que resultaram no Acordo de Paris, procura distinguir as responsabilidades e esforços dos países ricos com os do mundo em desenvolvimento.

A inclusão do princípio de diferenciação foi um dos motivos para que os negociadores dos EUA discordassem do acordo. O outro foi as metas de redução de carbono.

A insistência brasileira de incluir a diferenciação foi assunto de especulação. "Alguns acreditam que isso signifique compromissos ou taxações diferentes conforme a rota dos navios", disse um observador. Ou seja, um navio que fosse dos EUA à Europa teria que demonstrar desempenho diferente de outro, que fosse do Brasil à China, por exemplo. "Não falamos sobre isso", diz Chiarelli.

A brecha aberta pelo princípio que reconhece o diferente estágio de desenvolvimento entre os países pode, no futuro, fazer com que os países industrializados se comprometam com transferência de tecnologia e recursos financeiros.

"É um grande passo para o setor de transporte marítimo", avalia Mark Lutes, especialista de clima do WWF. "Mas há um longo caminho pela frente. É preciso concordar em implementar, com urgência, medidas de curto prazo para começar a reduzir emissões."

O Brasil, ao aceitar o acordo, expressou reserva à meta absoluta de corte de 50%. "Não nos opusemos ao acordo inteiro porque entendemos que a decisão tem elementos que irão nos permitir continuar a discutir os impactos que possam acontecer", explica Chiarelli.