Correio braziliense, n. 20367, 24/02/2019. Mundo, p. 17

 

Nova carta, regime intacto

24/02/2019

 

 

Cuba » Referendo deve confirmar hoje, sob protestos da oposição, a reforma constitucional que reconhece a propriedade privada, com limites, mas mantém o horizonte socialista, o controle estatal da imprensa e a hegemonia política do Partido Comunista

Mais de 8 milhões de eleitores devem comparecer hoje às urnas no referendo sobre a nova Constituição de Cuba, em meio às comemorações dos 60 anos da revolução comunista liderada por Fidel Castro. Aprovado pelo parlamento para substituir a Carta de 1976, o texto reconhece, com limites, a propriedade privada e o enriquecimento individual, mas mantém o Partido Comunista de Cuba (PCC) como única força política oficial, o que pode restringir as chances de amenizar o isolamento internacional. Segundo a nova redação, “apenas no socialismo e no comunismo o ser humano alcança a dignidade plena”.

O governo de Havana está otimista de que alcançará o mínimo de 50% dos votos mais um para aprovar o texto constitucional, que entrará em vigor, caso seja respaldado pelos eleitores, após publicação no Diário Oficial, em data por definir. “Você ratifica a nova Constituição da República?” é a pergunta impressa na cédula de votação, acompanhada das opções “sim” e “não”.

A consulta popular, com participação facultativa, foi precedida de uma campanha governamental onipresente nas redes sociais e nos canais de televisão estatais — os únicos com sinal aberto. Com o uso da hashtag #YovotoSí (eu voto sim), a estratégia apelou ao patriotismo e questionou as posições contrárias.

No referendo de hoje, diferentemente do que fazem nas eleições regulares, a cada cinco anos, os opositores, acostumados a defender a abstenção, a anulação ou o voto em branco, fazem campanha pelo “não”. No entanto, lemas como #YovotoNo (“eu voto não”), impulsionados também nas redes sociais, não chegam aos destinatários quando enviados por SMS, segundo noticiou recentemente a agência de notícias France-Presse.

Os resultados oficiais preliminares devem ser conhecidos na tarde de amanhã. No hipotético cenário de vitória do “não”, continuará em vigor a Carta de 1976, e o governo teria de adequar as antigas normas para dar base legal às reformas já aplicadas, o que criaria um cenário político sem precedentes em 60 anos.

“Farsa”

O novo texto constitucional, que se mantém fiel, em grande parte, aos antigos ditames soviéticos, será testado nas urnas uma semana depois de o presidente americano, Donald Trump, ter afirmado, em Miami, que “os dias do socialismo e do comunismo estão contados na Venezuela e também na Nicarágua e em Cuba” — os países apontados pelos EUA como a “troika da tirania”.

Na mesma toada, um fórum recente na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, denunciou o “ilegítimo” referendo cubano e o definiu como uma “farsa” que só serve para “mascarar a ditadura” na ilha comunista. Na ocasião, o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, opositores e especialistas cubanos concordaram que o governo de Havana não respeita os princípios democráticos que regem a entidade regional, constantes da carta adotada em 2001.

Cuba foi suspensa da OEA em 1962, em meio à Guerra Fria, mas essa sanção foi suspensa em 2009. No entanto, a ilha comunista não pediu a reintegração à entidade de 35 membros. Assim, ficou desobrigada de assinar a Carta Democrática Interamericana.

Ante a onda de pressões contra o regime, o presidente Miguel Díaz-Canel afirmou, na quarta-feira, que “a primeira vitória é a que temos de consolidar no próximo domingo, com o voto ‘sim’ pela Constituição, que é um voto também pelo socialismo, pela pátria, pela revolução, por Fidel e por Raúl (Castro)”.

Tramitação

O projeto da nova Constituição foi apresentado em julho de 2018 e debatido pela população durante três meses, antes de ser ajustado e aprovado pelo parlamento, no fim de dezembro. Na interpretação do governo, tratou-se de “um vasto exercício de democracia”.

O resultado foi um texto que, sem renunciar à sociedade comunista, reconhece o mercado, a propriedade privada e o investimento estrangeiro, o que proporciona uma base legal para a abertura da economia, iniciada há 10 anos. Hoje, 591 mil cidadãos trabalham no setor privado, o equivalente a 13% da força de trabalho.

A Constituição de 1976 entrou em vigor com o apoio de 97,7% dos eleitores. A reforma constitucional de 2002, destinada a tornar o socialismo “irrevogável”, recebeu 99,3%. No referendo de hoje, a aprovação com um percentual consideravelmente menor terá outras leituras políticas.

Dúvidas, decepções e algum alento

O que muda

• Reconhecimento da propriedade privada e do enriquecimento individual – com limites

• Criação do cargo de primeiro-ministro para chefiar o governo

• Discriminação a pessoas LGBT passa a ser proibida

• Referendo para definir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo

• Garantia de presunção de inocência e habeas corpus em processos criminais

• Estado laico

• A liberdade de imprensa deixa de ser vinculada aos “fins da sociedade socialista”

• Determina 60 anos como idade máxima para o cargo de presidente da República

• Mandato de cinco anos para o presidente, com direito a uma reeleição

• Cubanos poderão denunciar violação de direitos constitucionais cometidos pelo governo

O que não muda

• Cuba continua um país comunista

• O Partido Comunista é o único reconhecido

• Economia planificada, embora haja reconhecimento do mercado

• Somente o Estado detém a posse da terra

• A Assembleia Nacional elege o presidente e o primeiro-ministro;

• Meios de comunicação são de “propriedade socialista”, jamais privados.

O que não está claro

• Quais os limites para a propriedade privada

• Se haverá possibilidade de surgimento de uma imprensa livre e independente

• Como os cubanos poderiam denunciar violações de direitos cometidas pelo governo

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Cubanos do exterior se inclinam pelo "não"

24/02/2019

 

 

O engenheiro cubano Nelson Padron Sanchez, doutorando da Universidade de Brasília (UnB), disse que, se estivesse em seu país, votaria “não” no referendo da nova Constituição. “Entre outros motivos, acho o processo de consulta totalmente errado, feito de propósito para facilitar uma edição final controlada pelo governo. Nenhum eleitor consegue ter certeza de que seu voto será considerado, sem filtros”, afirmou ao Correio.

“Por outra parte, a insistência em manter um único partido acima de tudo — no caso, o Partido Comunista de Cuba — reflete a falta de liberdade de expressão, a repressão física e moral àqueles que não podem expor suas ideias, inclusive as próprias ideias socialistas”, acrescentou.

Sanchez rechaça o dispositivo do novo texto constitucional que garante aos cubanos o direito de denunciar as violações de direitos cometidas pelo governo. “Isso é uma fantasia”, disse. Outro ponto rejeitado por ele é o que assegura a liberdade de imprensa na ilha comunista. Para ele, mais uma falácia, pois “a liberdade continuará exclusiva para a imprensa socialista, que responda aos interesses do governo”.

Outro cubano, o professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) Hans Carrillo Guach, doutor em estudos comparados sobre as Américas, também disse que votaria pelo “não”, se estivesse em Cuba. Segundo ele, tanto a elaboração do novo texto constitucional quanto a organização da consulta popular foram antidemocráticos, parciais e sem transparência.

“A população não sabe quais foram as propostas coletadas durante os ‘debates’ populares, por exemplo”, disse à reportagem. “Portanto, não sabemos a totalidade das propostas que foram excluídas e o porquê. E isso implica a violação de algumas das etapas fundamentais de qualquer processo participativo”, acrescentou.

Guach também criticou o Artigo 4º do novo texto constitucional, “quando fala que a maior honra de qualquer cidadão cubano é a defesa da pátria socialista, e que qualquer pessoa tem direito de combater, através de qualquer meio ou recurso, aquelas que tentem derrubar a ordem existente”.

“Ou seja: só pode existir uma pátria para todos os cubanos e ela é socialista?”, questionou o professor. “No caso de o regime ‘socialista’ não satisfazer às necessidades da população (econômicas, políticas e outras), como tem acontecido até agora, ninguém tem direito de mudar isso? E se alguém tentar, outros terão direito de bater nele? Para mim, esse é um dos desdobramentos práticos desse artigo.” (JV)

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Três perguntas para...

24/02/2019

 

 

Hans Carrillo Guach, cubano, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG)

Qual sua opinião sobre o novo texto constitucional?

Sou contra, porque não poderia votar por uma Constituição que discrimina meus filhos por motivos ideológicos e nega os direitos dos que contestam a ordem (emigrados ou não). É o resultado do que tem sido o país nesses 60 anos de uma falsa revolução, com muitas limitações (políticas, econômicas, sociais) que atentam contra o prometido. Não votaria por uma Constituição que coloca como força política suprema um partido comunista que não tem apoio absoluto na população e não reconhece e deslegitima qualquer adversário político.

O que representa o reconhecimento da propriedade privada e do enriquecimento individual?

Isso constitui outro exemplo de maniqueísmo democrático, pelo menos desde meu ponto de vista. O artigo 22 coloca um elemento importante. Diz que “o Estado regula a não concentração da propriedade em pessoas físicas ou jurídicas não estatais”, com base na “preservação dos limites compatíveis com os valores socialistas de equidade e justiça social”. Na minha opinião, o que o Estado deveria fazer é controlar a maneira de as pessoas enriquecerem ou concentrarem propriedades, para evitar ilegalidades, mas nunca regular aquelas pessoas que, por seus esforços e suas capacidades, possam ter mais do que os outros.

O texto da nova Constituição diz que os cubanos poderão denunciar violações de direitos cometidas pelo governo. A quem um cidadão poderá fazer esse tipo de denúncia?

Os artigos 61, 98 e 99 são exemplos referentes ao direito dos cidadãos de denunciar violações das autoridades. É bom que esses direitos estejam explícitos, mas não é suficiente. O que faria real diferença seria uma estrutura eficiente e favorável a esse fim, coisa que em Cuba não existe. Porque os tribunais existem, mas não funcionam para esses processos. Você acha que o Estado vai facilitar mecanismos que atentem contra as instituições e os funcionários que o defendem e sobre os quais se sustenta o próprio sistema, burocrático, centralizado e autoritário?