Valor econômico, v.19, n.4540, 06/07/2018. Empresas, p. B1

 

Com Embraer, Boeing consolida liderança em aviação comercial 

Stella Fontes 

Camila Maia 

Rodrigo Rocha

Ivan Ryngelblum

06/07/2018

 

 

Após meses de negociação, Embraer e Boeing assinaram ontem o memorando de entendimentos que traz as linhas gerais para constituição de uma nova empresa, que, na prática, representa a venda de 80% da área de aviação comercial da fabricante brasileira de aeronaves para a gigante americana. Pela participação de 80% na nova entidade, a Boeing pagará US$ 3,8 bilhões, ou R$ 14,9 bilhões ao câmbio atual, deixando a Embraer com os negócios de aviação executiva, serviços e defesa, além da fatia remanescente de 20%.

Com o acordo, cuja versão definitiva será elaborada até o fim de 2019, após aval de órgãos antitruste em diferentes países, a Boeing garante a liderança global em aviação comercial com portfólio de aeronaves de 70 a 450 assentos. Hoje, a Embraer é líder no mercado de jatos de até 150 assentos e a americana, nos segmentos de grandes aviões. "A junção forma uma força global, um expoente global", disse ao Valor o presidente da companhia brasileira, Paulo César de Souza e Silva.

Para o executivo, a associação com um parceiro estratégico como a Boeing "traz benefícios para todos: para a Embraer, para funcionários, para o Brasil, para as exportações". "É a garantia de sustentabilidade da empresa", ressaltou. Globalmente, o setor aeroespacial está se reorganizando e os grandes fabricantes buscam somar forças para fazer frente à concorrência, reduzir custos e acelerar o desenvolvimento de produtos. A operação, reconheceu, vem em resposta a essas mudanças.

"A Embraer está em seu melhor momento em aviação comercial e executiva, mas tem de olhar para a frente e entender a dinâmica", afirmou o executivo.

Dennis Muilenberg, CEO: "Parceria está claramente alinhada à estratégia de longo prazo da Boeing"

Com sede no Brasil e de capital fechado, a nova empresa foi avaliada em US$ 4,75 bilhões - ou pouco mais de R$ 18,5 bilhões, bem próximo do valor de mercado da Embraer no fechamento de quarta-feira. Ela ficará com a fábrica principal de São José dos Campos (SP) e a unidade da Eleb (fabricante de trens de pouso e peças relacionadas), mais unidades de Taubaté (SP) e de Évora, em Portugal, onde são feitas peças estruturais.

A Embraer terá a opção de, nos próximos 10 anos, vender sua participação de 20% para a Boeing, por valor corrigido pela inflação. Após esse prazo, estará está livre para vender a qualquer interessado a fatia, que deve gerar ganhos na forma de dividendos. "Isso será absolutamente bom, com o crescimento futuro da empresa de aviação comercial a Embraer vai receber mais e mais dividendos", disse.

A parceria permitirá ainda redução de custos significativa para o setor de aviação comercial, "que de outra forma não seria possível, especialmente com a cadeia de fornecedores", conforme o executivo. Todo o ganho de caixa com a operação vai para a Embraer, mas o uso desses recursos será decidido posteriormente. "Vamos decidir o uso depois, o que vai incluir pagamento de dividendos, desalavancagem, novos investimentos e possivelmente um programa de recompra de ações", afirmou.

A Boeing terá o controle operacional e a gestão da nova empresa, e espera contabilizar a parceria nos resultados por ação a partir de 2020. A Embraer, por sua vez, terá assento no conselho de administração e reconhecerá a participação de 20% via equivalência patrimonial. A expectativa, vista como conservadora, é de sinergia anual de custos de US$ 150 milhões, antes de impostos, até o terceiro ano, após o início das operações.

Nova entidade receberá fábrica principal de São José dos Campos, Eleb e unidades de Taubaté (SP) e Évora, em Portugal

"Esta importante parceria está claramente alinhada à estratégia de longo prazo da Boeing de investir em crescimento orgânico e retorno de valor aos acionistas, complementada por acordos estratégicos que aprimoram e aceleram nossos planos de crescimento", afirmou, em nota, o principal executivo da Boeing, Dennis Muilenberg, a quem se reportará a administração da nova empresa.

A combinação dos portfólios de Embraer e Boeing em jatos comerciais representa importante vantagem competitiva nas negociações com companhias aéreas, segundo Silva, ao ampliar a oferta de produtos a seus clientes. "Ao oferecer um portfólio completo às companhias aéreas, amplia-se a eficiência dessas empresas. É fundamental que a gente tenha uma oferta mais abrangente", afirmou.

Conforme o vice-presidente financeiro e de relações com investidores da Embraer, Nelson Salgado, cerca de 20% dos ganhos de capital decorrentes da transação devem ser revertidos em impostos. Depois do pagamento de tributos, os recursos remanescentes serão revertidos aos acionistas, por meio do pagamento de dividendos especiais e, possivelmente, por um programa de recompra de ações. Outra opção é reverter os ganhos em investimentos. A Embraer ainda está calculando quanto da dívida e do caixa vão migrar para a nova empresa de aviação comercial.

O memorando de entendimentos assinado ontem prevê também a constituição de uma segunda joint venture, desta vez controlada pela Embraer, para promoção comercial, especialmente do avião de transporte militar multimissão KC-390. A participação acionária exata de cada sócio ainda não foi definida, mas as duas fabricantes avaliam que há grande potencial para o KC-390 no mundo, substituindo modelos na categoria do Lockheed C-130A Hercules.

Acordo prevê criação de outra empresa conjunta para promover vendas do cargueiro KC-390 em novos mercados

Segundo o presidente da Embraer, esse novo formato da operação - falava-se apenas da associação em aviação comercial - abre importantes possibilidades após a consumação da transferência do negócio de aviação comercial para a sociedade controlada pela Boeing. "Essa nova empresa abre uma importante avenida de crescimento para a Embraer em defesa, com penetração global e acesso a novos mercados", ressaltou.

A parceria em defesa tem viés comercial, mas eventualmente poderá envolver também montagem já que, para fornecimento a determinados países, há exigência de fabricação local. "Mas isso é assunto para o futuro", ponderou Silva.

O KC-390 continuará sob o guarda-chuva da Embraer, com fabricação em Gavião Peixoto (SP), e há expectativa de redução do custo do cargueiro militar, sobretudo no que se refere a materiais. Já os investimentos serão realizados em conjunto. "Também vamos poder vender o KC-390 para o governo dos Estados Unidos por meio da Boeing", afirmou o executivo.

Ao transferir a área de aviação comercial para uma nova empresa, a Embraer S.A. passa a ser uma companhia com receita anual da ordem de U$ 2,5 bilhão, dos quais US$ 1 bilhão em defesa e US$ 1,5 bilhão em aviação executiva, e seguirá listada na B3 e na bolsa de Nova York. Um dos negócios mais importantes do ano na área de fusões e aquisições está sendo conduzido exclusivamente por dois grandes bancos estrangeiros: o Citi, pelo lado da Embraer, e o J.P. Morgan, pelo lado da Boeing. As instituições não comentam o assunto. (Colaboraram Virgínia Silveira, de Orlando, e Talita Moreira)

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Restou metade da receita, mas só 10% do lucro

Fernando Torres

06/07/2018

 

 

Com o anúncio da venda de 80% da divisão de jatos comerciais para a Boeing, por US$ 3,8 bilhões, a Embraer vai reter dois segmentos de negócio que lhe deram prejuízo operacional de R$ 350 milhões no ano passado, ante um lucro de R$ 198 milhões em 2016.

Apesar de representar 45% da receita da companhia entre 2013 e 2017, os segmentos de defesa e de jatinhos executivos da Embraer, que vão ficar com a empresa, responderam por apenas 10% do lucro operacional acumulado nesse período de cinco anos.

Do ponto de vista do acionista da Embraer na bolsa, é substancialmente esse negócio de margem e retorno apertados que vai restar. A participação de 20% na divisão comercial deve proporcionar dividendos e ser contabilizada como equivalência patrimonial - ou seja, a cada 100 de lucro líquido da empresa de baixo, 20 entrarão na demonstração de resultado da Embraer.

O retorno sobre ativos das áreas de defesa e executiva, calculados pela divisão do lucro operacional pelos ativos do respectivo segmento, tem oscilado entre o azul e o vermelho desde 2013, ficando numa média de apenas 1%. Esse índice, que não é sustentável no longo prazo, se compara com o retorno médio de 26% do negócio que está sendo vendido.

No curto prazo (embora somente após a conclusão do negócio, o que deve levar alguns meses), o que se espera é que o valor pago pela Boeing, ao comprar a fatia de 80% do negócio de aviação comercial, se transforme em remuneração para os acionistas da Embraer, seja em dividendo extraordinário ou em recompra de ações, embora a companhia não tenha dito se todo o valor será distribuído, e de que forma.

Convertido pelo câmbio de R$ 3,91, o valor de US$ 3,8 bilhões representa pouco menos de R$ 15 bilhões, ou quase R$ 20 por ação - enquanto cada papel da Embraer fechou ontem em R$ 23,10, queda de 14,29%.

Um fator importante para ajudar o mercado a fazer conta sobre o valor da ação da Embraer após o negócio é quanto da dívida líquida de US$ 759 milhões em março ficará na empresa de aviação comercial - hoje a área detém 43% dos ativos e gera 55% da receita. Na teleconferência de ontem, os executivos da empresa foram questionados sobre o tema, mas disseram que não têm esse valor definido.

A forte queda das ações ontem indica que os acionistas aguardavam condições melhores para a venda da divisão comercial, mas não chega a zerar o ganho gerado pela transação.

Em 20 de dezembro, último pregão antes do vazamento da negociação, o valor de empresa da Embraer era de US$ 4,4 bilhões - sendo US$ 3,67 bilhões a parcela dos acionistas e US$ 722 milhões de dívida líquida, o que equivalia a 5,2 vezes o Ebitda de 12 meses da companhia até setembro. Agora, a Boeing avaliou apenas o negócio de aviação comercial em US$ 4,75 bilhões, com um múltiplo próximo de 7,5 vezes.

Na bolsa, as ações da Embraer acumulavam ganho de 65% em reais e de 39% em dólar desde que as tratativas se tornaram públicas até ontem. Com a queda dos papéis ontem, a valorização acumulada cai para 40% em reais e para 18% em dólar.