Valor econômico, v.19, n.4548, 18/07/2018. Opinião, p. A8

 

A pressão por uma nova lei dos agrotóxicos 

Fabio Feldman 

Suely Araújo 

18/072018

 

 

No Brasil, há consolidada tendência de se tentar remeter à lei em senso estrito a solução de todos os problemas afetos às políticas públicas, nos diferentes níveis da federação. Sem uma avaliação prévia consistente de quais questões necessitam ser enfrentadas com inovações pelo legislador e quais deveriam ficar a cargo dos gestores e outros atores que aplicam a legislação já em vigor, muitas vezes são propostas soluções frágeis para falsos problemas. Ou mesmo buscados problemas depois da definição de soluções, com a construção de narrativas nem sempre totalmente racionais.

Exemplo desse quadro está na proposta de uma nova Lei dos Agrotóxicos (ou, para os que defendem a mudança do termo, "produtos fitossanitários" ou ainda, de acordo com a última versão, "pesticidas"), no âmbito do processo do Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002 e seus apensos, em trâmite na Câmara dos Deputados. A lei que disciplina o tema (Lei n} 7.802/1989), aprovada pouco depois da Carta de 1988, teve seu regulamento atualizado em 2002. A data, por si só, jamais deveria ser motivo para sua substituição, como justificam alguns dos defensores de uma nova lei. A Lei da Política do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) é mais antiga e mantém-se atual e inovadora, como atestam os mais consagrados doutrinadores do Direito Ambiental brasileiro.

A Lei 7.802/1989 compartilha responsabilidades de registro dos agrotóxicos entre três órgãos federais - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Ministério da Saúde e Ministério do Meio Ambiente. Objetiva assegurar, assim, que os diferentes aspectos técnicos sejam considerados na avaliação dos produtos a serem registrados. As atribuições nesse campo dos órgãos das áreas de saúde e meio ambiente, operacionalizadas pela Anvisa e pelo Ibama respectivamente, não podem ser confundidas com uma fase cartorial de mera homologação de análises de risco apresentadas pelos requerentes, como proposto no texto recém aprovado pela Comissão Especial da Câmara.

O importante desafio de conseguir que agricultura, saúde e meio ambiente trabalhem de forma coordenada, com eficácia e eficiência, não pode ser enfrentado com a sobrevalorização de uma dessas áreas em detrimento das demais, como faz o texto da Comissão Especial ao empoderar notadamente o Mapa.

Afirma-se que o registro dos agrotóxicos é lento, que essa demora gera problemas para a competitividade da agricultura no país. Nem sempre os órgãos federais envolvidos respondem com rapidez às demandas apresentadas pelos requerentes, por problemas conhecidos de escassez de recursos humanos, que terão de ser solucionados por concursos públicos. As deficiências nesse sentido, contudo, não deveriam respaldar disposição claramente frágil dos pontos de vista técnico e jurídico como a proposta da Comissão Especial de, após o decurso dos prazos estabelecidos, registrar temporariamente produtos adotados para usos similares em três países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Assumindo uma análise séria, pode-se simplesmente replicar para o Brasil registros de outros países, sem consideração de suas especificidades ambientais e, também, de produção agrícola? Mais do que isso, é mesmo verdade que eventuais demoras no registro de agrotóxicos obstaculizam a competitividade de nossa agricultura?

A demanda reprimida por agrotóxicos é questionável. 48% dos produtos registrados não foram vendidos em 2016

Cabe questionar a existência de demanda realmente reprimida nesse campo. Há de fato lista extensa de pleitos de novos registros em curso nos órgãos federais. Todavia, 48% dos produtos registrados no país não foram comercializados em 2016, segundo dados do Ibama. Muitos registros não se transformam em "produtos de prateleira". Há também multiplicidade de registros para o mesmo princípio ativo. Temos registrados no Brasil 221 produtos contendo Glifosato, a substância campeã de vendas no setor, e 33 novos pedidos de registro em análise pelo Ibama. Existem 153 produtos contendo a substância 2,4-D registrados e 14 aguardando avaliação pela mesma autarquia. Outros exemplos poderiam ser citados. As listas de 2016 e 2017 elaboradas pelo Mapa para fins de priorização das avaliações pelo Ibama e Anvisa somam 124 produtos, dos quais apenas 20 são à base de ingredientes ativos novos.

Como definir de forma coordenada pelas áreas de agricultura, saúde e meio ambiente as categorias de produtos para as quais o Brasil necessita de novos registros? Essa deveria ser preocupação fundamental do Poder Público, para a qual não se faz necessária aprovação de nova lei. A priorização necessita também refletir a preocupação com os menores impactos possíveis para o meio ambiente e a saúde pública. É esse debate que precisa ser colocado de forma transparente para a sociedade.

Também não se faz necessária nova lei para a adoção de metodologias de análise de risco no processo de registro de agrotóxicos. O Ibama já aplica esse tipo de avaliação em relação aos efeitos de determinadas substâncias aos polinizadores e para isso não necessitou alterar a Lei 7.802/1989. Na verdade, ajustes no processo de registro via maior ênfase na análise de risco podem ser adotados, independentemente de nova lei. Para sua institucionalização, se a formalização for considerada relevante pelos órgãos partícipes do processo, um caminho possível seria a edição de um novo decreto regulamentador da lei em vigor. Aperfeiçoamentos em algumas regras operacionais são viáveis, sem partir para o caminho de flexibilizar a legislação atual, como faz o texto aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. A narrativa calcada nos benefícios técnicos da análise de risco não pode respaldar atenuação no rigor da avaliação técnica considerando a saúde pública e a proteção do meio ambiente.

Anteriormente à decisão por uma nova Lei dos Agrotóxicos, o país precisa discutir com clareza as razões que fundamentam essa proposta. Se existem problemas, eles serão realmente resolvidos por uma nova lei? A dependência excessiva dos agrotóxicos em nossos sistemas agrícolas também não é problema a ser necessariamente enfrentado? Há questões estruturais a serem debatidas, que ultrapassam os limites dos dispositivos formais de uma lei.