Valor econômico, v.19, n.4552, 24/07/2018. Legislação & Tributos, p. E2
Corrupção privada e impunidade
Nathália Rocha Peresi
24/07/2018
No Brasil não se pune criminalmente a corrupção privada. O jeitinho brasileiro gingado para cobrar de um prestador de serviços ou fornecedor de matéria prima uma "bola", um "café", um "valor por fora", em troca de sua contratação, no âmbito privado, não recebe tratamento específico pelo direito penal.
No setor privado, o corrupto seria aquele que age deslealmente, que veste a camisa de uma determinada empresa e trai os interesses corporativos para favorecer os seus próprios, cobrando de fornecedores um passe de entrada na forma de propina para facilitar contratos e negócios.
A tendência quase que irrefreável é que essa conduta se torne, no nosso país, um crime. Sob torcidas que apresentam argumentos contrários e favoráveis, tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei sobre o tema. O Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012 discorre sobre um novo Código Penal e nele é previsto espaço para a corrupção "entre particulares" ou privada. Há ainda o Projeto de Lei do Senado nº 455 de 2016, mais recente, oriundo da CPI do Futebol que investigou contratos da CBF.
Vale lembrar que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, ratificada em 2005, que orienta os Estados a adotarem medidas preventivas contra a corrupção privada, sujeita a sanções cíveis, administrativas e criminais. Espelha-se, ainda, no exemplo de países que já há muito combatem pela via penal a corrupção no setor privado, como França, Alemanha e Inglaterra.
Suponhamos, portanto, que em breve teremos, no rol dos tipos penais, a previsão de punição desse tipo de conduta. A questão que se coloca é se a criminalização da corrupção privada será eficiente para prevenir os "esquemas" entre compradores e fornecedores. Ou se trará aos brasileiros aquela velha sensação tão reclamada de impunidade.
A corrupção prevista no Código Penal Brasileiro corresponde a um desvio de conduta no seio da Administração Pública. Pune-se o corrupto passivo, o agente público que recebe uma vantagem indevida, em razão de seu cargo, de um corruptor ativo, o agente privado que desembolsa essa propina. Mas a corrupção não é apenas um crime, é um fenômeno enraizado na história do nosso país.
O que não faltam são processos em curso por meio dos quais suspeitos de solapar o dinheiro público em detrimento de interesses particulares encontram-se formalmente acusados, pelo Ministério Público, perante o Judiciário. Por outro lado, ao invés de esses sem número de processos inibirem a corrupção, o que temos hoje é a sensação de que essa prática nociva só aumenta. É assim que a intensa atividade persecutória tem criado, contraditoriamente, a sensação de "enxuga-gelo". A erva daninha cortada dá espaço a outra no seu lugar.
A sensação de buraco sem fim pode ser, em grande parcela, atribuída ao fato de que a corrupção pública é um fenômeno endêmico, que parasita há séculos nos cofres públicos. Mudam-se os governos, perduram as práticas. Valores de cafezinho, fortunas debaixo dos colchões. Não por menos somos conhecidos pelo nosso "jeitinho". Os caminhos fáceis se tornam tortuosos.
E, no quesito corrupção pública, não vale afirmar que há lacuna no nosso direito penal. O nosso código promulgado em 1940 prevê duras penas, no limite de 12 anos de prisão, para cada transação corrupta. Não obstante, a sensação do brasileiro é de impunidade.
Eventuais desacertos não significam que não devemos continuar lutando, mas significam que devemos aprender com a nossa história e conhecer melhor nossos instrumentos de luta.
A despeito de zelarem por bens jurídicos e interesses diferentes, os tipos penais de corrupção pública e privada tratam das mesmas condutas que contaminam as relações entre o ente público e o ente privado e entre entes privados, respectivamente. A previsão de responsabilização criminal daqueles que transigem indevidamente em prejuízo da Administração Pública não se mostra suficiente para erradicar toda ou boa parte da corrupção. Com relação a um futuro crime de corrupção privada, possivelmente também não será, por si só, solução.
A pena do direito penal exerce certamente a função preventiva, não apenas a repressiva. E a punição de um crime previsto em lei depende de uma série de fatores. Depende, sobretudo, da correta instrumentalização do processo penal, que os fins não justifiquem quaisquer meios. Depende da correta prestação jurisdicional, da celeridade processual, da imparcialidade da Justiça.
Rechaçar a corrupção privada depende da conscientização do povo. É necessário "resetar" a nossa herança cultural que prestigia a "malandragem" e construir uma nova, apoiada nos valores de honestidade, lealdade, justiça e retidão. Depende de disseminarmos as gentilezas nas pequenas coisas e gestos.
Disso pouco se fala, mas poderiam ser os fatores essenciais contra a impunidade, para além da expansão do Direito Penal.