Valor econômico, v.19, n.4553, 25/07/2018. Opinião, p. A10

 

Mais avanço que retrocessos na MP do saneamento básico

Brno Calfat 

25/07/2018

 

 

O déficit de saneamento no país é conhecido de todos. Décadas se passam, mas pouco se consegue evoluir em números percentuais acerca da população atendida. O desafio é grandioso e os entraves de diferentes ordens.

No plano normativo, o marco legal do setor ganhou atualização pouco mais de uma década após seu lançamento. A modernização das diretrizes nacionais do saneamento básico, aguardada com grande expectativa, parece ter sido recebida com frustração. Sobram críticas ao texto da Medida Provisória 844, de 6 de julho de 2018. Críticas relacionadas à dimensão das inovações, à incompletude do texto, à imprecisão de vocábulos e termos jurídicos empregados, à aptidão para fomentar ambiente de incerteza jurídica, a sua compatibilidade com o pacto federativo, e a tantos outros aspectos. Já se noticia até um futuro questionamento ao Supremo Tribunal Federal (STF) que seria levado por associações e entidades do setor.

Em meio ao expressivo número de críticas à atualização normativa, permita-se resgatar do texto legal o que parece ser um de seus méritos: a Medida Provisória atentou para a evolução do fenômeno social-demográfico e urbanístico da conurbação, cada vez mais presente em grandes aglomerados urbanos, em que a expansão da ocupação faz desaparecer as linhas demarcatórias de onde termina um município e começa o outro. Ali, as noções de interpenetração, conjugação e compartilhamento são alçadas na mesma proporção em que perde força a noção de "interesse local", movimento que se verifica e se explica nos mais variados componentes da realidade social, mas especialmente no âmbito dos serviços de saneamento básico.

Trouxe a atualização do marco legal a previsão de que a titularidade dos serviços de saneamento pelos municípios e Distrito Federal seja exercida por meio de colegiado interfederativo formado a partir da instituição de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, ou de instrumentos de gestão associada, por meio de consórcios públicos ou de convênios de cooperação, na hipótese de "interesse comum".

Sensível à evolução da realidade social-demográfica, a atualização normativa estabeleceu como importante vetor que o exercício daquela titularidade, nos limites geográficos-territoriais do município, não feche os olhos para as demandas e interesses de cidades que com ele formem uma região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião. Na linha, aliás, do pensamento que guiou o julgamento que o Supremo Tribunal Federal proferiu na ADI n. 1.842/RJ, cinco anos antes, quando assentou que interesse comum e a integração metropolitana não são constitucionalmente incompatíveis com a autonomia municipal.

A formatação territorial-geográfica do país é determinante para fazer impossível que os mais de 5.500 municípios se incumbam do desempenho dos serviços de saneamento básico (i.e., serviços abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas) de maneira absolutamente estanque, autônoma e independente uns dos outros, sejam cidades contíguas ou não.

Em relação ao serviço de abastecimento de água, dois exemplos insólitos ilustram o que se afirmou: imagine-se se uma prefeitura cogitasse de interferir no fluxo natural de um rio que atravesse seu território, represando a corrente e interrompendo o fluxo de água nos trechos a jusante a pretexto de melhor organizar o serviço de abastecimento de água dentro dos seus limites territoriais. Ou então se outro município, no exercício independente da titularidade do serviço, resolvesse que a solução adequada para o esgotamento sanitário municipal seria o despejo de esgoto in natura em um rio que corte o território municipal. Em ambos os exemplos, o conjunto de cidades que têm seu território cortado por trechos do rio a jusante do ponto de interferência saiu atingido pela medida.

Já em relação ao serviço de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos deve-se levar em conta, além dos fatores de ordem natural, que os expressivos investimentos necessários à implantação de um Centro de Tratamento de Resíduos Sólidos (CTR) inviabilizam que cada cidade tenha implantado o seu próprio CTR para destinar e processar seus resíduos, tornando essencial o compartilhamento de estrutura de modo que um CTR atenda a um conjunto de municípios. Assim se contribui para a otimização da eficiência administrativa e se combate a nefasta perpetuação dos "lixões" que tanto agridem o meio ambiente.

Considerada a aptidão para repercutir em outras cidades, veio em boa hora a previsão de que a titularidade municipal dos serviços de saneamento seja exercida por meio de colegiado interfederativo na preservação do "interesse comum". Criticada ao discurso de que afrontaria o pacto federativo, cerceando o exercício livre e autônomo de serviço de titularidade municipal, a previsão parece fortificar o pacto ao propagar que o "interesse local" individualmente considerado de um município deve deferência ao respeito e preservação do "interesse local" de outros.

E não será porque a atualização do marco legal foi tímida na definição de critérios para orientar como se dará a coparticipação de municípios no colegiado interfederativo, na definição de parâmetros de representatividade e na definição de balizas para prevenir a concentração do poder decisório e/ou predomínio desmedido de um sobre outros, que ela não será merecedora de crédito.

Esse detalhamento, que poderá vir em sequência na regulamentação da norma, seguramente contará com as referências que a experiência dos especialistas tem a fornecer e com a colaboração da jurisprudência. Que a atualização normativa seja recebida com entusiasmo e com a serenidade da compreensão de que ela é o ponto de partida do aprimoramento, não a etapa final do processo.