Valor econômico, v.19, n.4553, 25/07/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Criptomoedas, guerrilha e acordo monetário

Maurício Vedovato

25/07/2018

 

 

No início dos anos 2000, a Argentina atravessava uma gravíssima crise econômica, na qual a manutenção da taxa de câmbio fixa, que atrelava o peso ao dólar (o regime chamado currency board), teve papel central. Uma das medidas extremas para combater a situação foi a imposição de limites à quantidade de dinheiro que correntistas podiam sacar dos bancos.

Esse foi o chamado corralito, que causou profunda falta de liquidez em pesos. Como reação, a população passou a criar sistemas de crédito para permitir o funcionamento da economia. Assim, supermercados, clubes de câmbio e até cidades passaram a emitir títulos para substituir o vácuo monetário deixado pelo Estado. Diversas moedas particulares foram criadas (como lecops, patacones e tickets trueque - as chamadas quase-moedas) e, assim como vales-refeição, eram aceitas em praticamente todos os negócios. No auge, o uso dessas quase-moedas representou por volta de um terço do dinheiro em circulação.

Esse é um dos exemplos do que Felix Martin chama de "guerrilha monetária", que ao longo da história vem sendo travada entre o Estado - detentor do monopólio sobre a moeda soberana - e os particulares que precisam de mecanismos eficazes para fazer a economia funcionar e, ao mesmo tempo, evitar o assenhoramento excessivo (nas suas palavras: "Onde o soberano não dá conta, dinheiros substitutos surgem espontaneamente" - in Dinheiro, Ed. Schwarcz, São Paulo, 2016, p. 85).

Na Inglaterra do século XVII, explica Martin, a solução dessa dicotomia foi a criação do Banco da Inglaterra, no chamado "grande acordo monetário", que uniu a força da moeda soberana com o conhecimento e estrutura das casas de comércio internacional e bancos privados. Essas entidades, que praticamente consistiam em cooperativas particulares de crédito mútuo, criaram sistemas de compensação que, apesar de muito eficientes, eram limitadas tanto por restrições de escala - ou de escalabilidade, para usar um termo em voga - quanto pela fragilidade da confiança, problemas não tão distantes dos que atualmente impedem a potencialização do uso de criptomoedas.

Guardadas as devidas proporções, o que parece haver hoje é mais um capítulo da guerrilha monetária. E como já nos mostrou a história, é possível que ela desemboque em um novo grande acordo monetário.

O sofrível Projeto de Lei nº 2.303/2015 impede esse novo acordo, pois pretende equiparar moedas virtuais a programas de milhagem aéreas, incluindo as moedas virtuais na definição de "arranjos de pagamento" - pelo que ignora não somente a tecnologia blockchain, bem como a existência de programas de fidelidade que não consistem em milhagens aéreas, mas também todas as demais diferenças entre os dois conceitos (i.e. escassez na emissão). Em que pese o desacerto desse projeto, os sinais dados pela maioria dos participantes de audiência pública realizada na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados são mais promissores.

Recentemente, a CCTCI realizou audiência pública para discutir a necessidade de regulação da blockchain. Nessa audiência, foram ouvidos diversos especialistas, inclusive do Banco Central e do ITS Rio.

Apesar de algumas opiniões no sentido da necessidade de regulamentação imediata da tecnologia, a maioria dos participantes entende que a tecnologia (i) ainda precisa amadurecer antes de ser possível compreeder como se deve regulamentá-la; (ii) que não se deve restringir esse amadurecimento, mas sim incentivar o seu desenvolvimento e se ater ao estabelecimento de princípios, tal como feito no Marco Civil da Internet; e (iii) que muitas questões já são resolvidas pela legislação atual, como, por exemplo, sustenta o Banco Central, que esclareceu não não ser um regulador de tecnologias, mas sim de serviços e produtos financeiros, os quais já contam com arcabouço regulatório suficiente.

Assim, ao contrário do PL nº 2.303/2015, a discussão iniciada na CCTCI parece estar voltada à tecnologia blockchain e às distributed ledger technologies (DLTs) como um todo, ou seja, referida discussão não parece tomar a parte pelo todo, nem legislar em razão da exceção, como é o caso do referido projeto de lei.

De qualquer forma, eventual regulamentação direcionada às criptomoedas não pode limitar o desenvolvimento da tecnologia subjacente, nos termos discutidos na audiência pública da CCTCI e, ao mesmo tempo, precisa contemplar - na maior extensão possível - todas as funções do dinheiro. Por exemplo, se de um lado a emissão de algumas criptomoedas - como o Bitcoin - é limitada pela própria tecnologia, de outro ainda não parece possível a implementação de políticas monetárias por meio das criptomoedas. Assim, funções importantíssimas do dinheiro - como as de organizar a economia e distribuir riqueza - ficam prejudicadas em razão da ausência da participação do poder soberano.

A questão que se coloca agora é como chegar a esse novo - e historicamente talvez inevitável - grande acordo monetário.