Correio braziliense, n. 20381, 10/03/2019. Mundo, p. 12

 

Guerra de discursos nas ruas de Caracas

10/03/2019

 

 

Venezuela » Nicolás Maduro e Juan Guaidó trocam acusações no terceiro dia de apagão que levou o caos ao país. Presidente denuncia Estados Unidos por "sabotagem tecnológica", enquanto líder da oposição responsabiliza chavista pela crise

Em meio ao mais longo apagão na Venezuela em décadas, milhares de pessoas foram às ruas de Caracas, convocadas pelo líder da oposição Juan Guaidó e pelo presidente Nicolás Maduro. Houve momentos de tensão, em que o Batalhão de Choque chegou a usar gás lacrimogêneo contra grupos que pediam a saída do governante. Autoproclamado presidente interino, Guaidó chegou à Avenida Victoria por volta das 15h30 e realizou um comício. Como a polícia impediu a instalação de um palco, ele subiu em um carro e, com um megafone, convocou as pessoas a não saírem das ruas até que Maduro renuncie.

“Devemos denunciar com responsabilidade a crise da gasolina, da água e dos hospitais. Tem nome e sobrenome: Nicolás Maduro”, discursou Guaidó. Desde às 16h53 de quinta-feira (horário de Caracas), a Venezuela enfrenta cortes de energia que não pouparam nem hospitais (leia mais nesta página), paralisaram o metrô, interromperam as telecomunicações e forçaram o fechamento de escolas, comércio e escritórios. Quase todos os 23 estados no país de 30 milhões de habitantes foram afetados. Ontem, a situação começou a ser normalizada, mas, durante as marchas pró e contra Maduro, os manifestantes foram surpreendidos com mais um apagão.

Falando a apoiadores no centro de Caracas uma hora depois do comício de Guaidó, Nicolás Maduro chamou os cortes de “guerra elétrica”. Ele afirmou que as Forças Armadas detectaram a existência de “ataques cibernéticos e eletromagnéticos dirigidos desde o estrangeiro, direto dos Estados Unidos”, com objetivo de “desestabilizar a Venezuela”. De acordo com Maduro, há pessoas infiltradas no setor energético do país, de onde teriam arquitetado uma “sabotagem”.

O presidente também afirmou que “centenas” de pessoas foram flagradas cortando cabos de energia e garantiu que o país está sofrendo sabotagem tecnológica. “Estamos diante da mais grave agressão do imperialismo norte-americano contra nossa pátria em toda a história de 200 anos de República”, discursou. Maduro garantiu que, na sexta-feira, o governo restabeleceu 70% da energia cortada.

“Não aguentamos”

Monitorados de perto por agentes do Serviço de Inteligência venezuelano e pelo Batalhão de Choque, os manifestantes que pediam a saída de Maduro do poder reclamavam da crise intensificada pelos apagões. “Não tem água, nem luz, nem comida. Não aguentamos mais”, disse Jorge Lugo, morador do bairro de Santa Mônica, em Caracas. “O problema é a comida. Tinha comprado carne e vai estragar. Vou à marcha, porque tem que haver uma mudança. Estamos cansados”, afirmou Luis Álvarez, empregado em uma transportadora.

Pela manhã, os opositores ao regime e a polícia venezuelana entraram em confronto. Ao tentarem ocupar a Avenida Victoria, os manifestantes foram impedidos e retirados da calçada. Uma mulher foi atingida por spray de pimenta. “A polícia é abusiva mesmo que também sofra da mesma calamidade que a gente”, disse a comerciante Lilia Trocel, 58 anos. “Eu ainda não tenho energia e perdi parte da minha comida”, declarou. “Queremos marchar”, gritavam os seguidores de Guaidó ao contingente policial. À tarde, depois de lançar gás lacrimogêneo, os policiais se retiraram da avenida, sendo bastante aplaudidos pela população.

No comício dirigido a seus apoiadores, no que chamou de “marcha anti-imperialista”, Nicolás Maduro chamou Juan Guaidó de “palhaço” e “golpista”. Sobre a ajuda humanitária oferecida por países latino-americanos, incluindo o Brasil, o governante afirmou que não era “ajuda”, nem “humanitária”. “Dissemos que não passariam e não passaram.”

Frase

“Estamos diante da mais grave agressão do imperialismo norte-americano contra nossa pátria em toda a história de 200 anos de República”

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Mortes em hospitais às escuras

10/03/2019

 

 

 

 

Dezessete pessoas teriam morrido em hospitais venezuelanos, em consequência dos apagões que, desde quinta-feira, interrompem o funcionamento de serviços básicos, incluindo os da área de saúde. A informação é do deputado e médico nuclear Jose Manuel Olivares, que passou o sábado postando, em sua conta do Twitter, relatórios periódicos sobre a situação dos estabelecimentos de Caracas e do resto do país. Treze vítimas, de acordo com o parlamentar de oposição ao governo Nicolás Maduro, estavam internadas no Hospital Manuel Núñez Tovar em Maturín, no estado de Monagas. Na capital, não houve mortes, disse Olivares.

Em um tuíte publicado às 21h45 de sexta-feira, o deputado relatou a morte de uma criança. “Informamos, com muita dor, que acabamos de confirmar o falecimento de uma bebê prematura de 7 meses à noite em Pérez Carreño durante o apagão”, escreveu. Ele também usou a rede social para apoiar médicos e outros profissionais de saúde. “Nosso mais profundo agradecimento aos médicos, enfermeiros, pessoal da saúde, que, durante todas essas horas, estão trabalhando incansavelmente para salvar as vidas dos venezuelanos, apesar do desastre de Maduro. De todo coração, obrigado!”

Segundo Olivares, o Instituto Venezuelano de Seguridade Social demitiu Neomar Balza do hospital onde o bebê prematuro morreu, depois que o médico denunciou as condições do Pérez Carreño. Um vídeo postado na conta da organização não governamental (ONG) Médicos Unidos Venezuelanos mostra Balza tentando entrar, enquanto é impedido por seguranças. Um deles parece agredir o médico, cuja câmera cai no chão. “Quando se tem convicção e amor pela profissão, não há medidas que calem nossa voz. O Dr. Neomar Balza, demitido por protestar contra as condições de trabalho, a falta de medicamentos, os insumos médicos e cirúrgicos e os direitos humanos dos pacientes”, diz um tuíte da conta.

O deputado Jose Manuel Olivares publicou um vídeo mostrando o que seria o interior de hospitais venezuelanos, incluindo unidades de terapia intensiva (UTIs), onde se vê a situação precária das instalações. “A #AjudaHumanitária não é um capricho de um grupo político, é algo que vai além de uma promessa, é um compromisso, uma responsabilidade, é uma luta constante e sem descanso”. A esse tuíte, uma internauta respondeu: “Não é um capricho, mas a essas alturas, parece uma fantasia”.