Valor econômico, v.19, n.4551, 23/07/2018. Brasil, p. A2

 

TCU faz objeções ao edital e vê risco à concorrência em leilão da Norte-Sul

Daniel Rittner

Murillo Camarotto

23/07/2018

 

 

A área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) quer que o leilão da Ferrovia Norte-Sul só ocorra quando houver clareza absoluta de como serão resolvidas as disputas em torno do direito de passagem dos trens da futura concessionária pelos trilhos de outras operadoras que dão acesso aos portos marítimos de Itaqui (MA) e de Santos (SP).

Sem isso, o próprio TCU aponta riscos de que a licitação seja "economicamente inviável para novos entrantes" no setor e haja disputa apenas entre as empresas que já controlam o acesso aos portos: a Rumo (dona da Malha Paulista) e a Vale (controladora da Estrada de Ferro Carajás e, por meio da VLI Logística, acionista do trecho norte da Norte-Sul).

O relatório sobre a concessão da ferrovia, obtido pelo Valor, pode frear os planos do governo de leiloar a Norte-Sul se suas propostas de encaminhamento forem acatadas pelos ministros do tribunal. O leilão é uma das grandes apostas do governo para a reta final de mandato do presidente Michel Temer na área de infraestrutura e está programado para o último trimestre de 2018.

Outros aspectos foram identificados pelos auditores como potenciais fontes de problemas e fazem parte de uma lista de determinações de ajustes que devem ser feitos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) no edital definitivo do projeto.

A versão preliminar do edital prevê um lance mínimo de R$ 1,097 bilhão pela concessão da ferrovia por 30 anos. Vence quem oferecer o maior valor de outorga, que será paga em prestações anuais ao longo do contrato.

Mais de 90% dos 1.537 quilômetros de extensão da ferrovia que serão concedidos entre Porto Nacional (TO) e Estrela D'Oeste estão prontos. Um dos lotes das obras remanescentes ainda está sob responsabilidade da estatal Valec, que prometia concluir tudo até setembro deste ano, mas uma das construtoras decidiu rescindir unilateralmente o contrato e o prazo não será cumprido. Por isso, um dos pontos levantados pela área técnica do TCU é a fixação no contrato de uma data-limite para o término efetivo das obras públicas porque qualquer atraso impactará o início das operações ferroviárias.

Pelas regras do edital, quem ganhar o leilão precisará assumir as obras em outros três lotes não concluídos pela Valec e gastar em torno de R$ 175 milhões com essas pendências. Os auditores do tribunal, porém, fazem um alerta importante: esse valor pode subir.

Inspeções anteriores do TCU detectaram que a brita usada pelas empreiteiras contratadas da Valec em três lotes estão fora das especificações e possivelmente terão que ser substituídas. O custo da intervenção já foi estimado pela estatal em R$ 103 milhões, mas esse número é incerto. Pode haver a necessidade de troca dos trilhos e dormentes, com desmontagem e remontagem da superestrutura. "Conclui-se, então, que os valores previstos no Capex para a conclusão dos lotes 4S, 5S e 5SA podem estar subdimensionados", diz o relatório técnico.

Ajustes de cálculo também fizeram os auditores do tribunal sugerirem uma redução do material rodante que deverá ser adquirido pela futura concessionária. Projeta-se uma redução de 14 locomotivas e 416 vagões do número de equipamentos exigidos inicialmente. Isso diminui a estimativa de investimentos e pode aumentar o valor de outorga pedido.

Na proposta de encaminhamento aos ministros do órgão de controle, a área técnica quer uma determinação de que a ANTT "se abstenha" de publicar o edital definitivo enquanto não esclarecer "como pretende atuar no caso de conflito entre concessionárias por eventual ausência de capacidade das ferrovias" pelas quais os trens da Norte-Sul terão que passar para ter acesso aos portos.

O leilão deverá ser realizado apenas depois de assinados os termos aditivos aos contratos da ANTT com as demais concessionárias que prevejam "condições para o exercício do direito de passagem" em seus trilhos. Esses aditivos devem estipular uma tarifa-teto e uma reserva de capacidade para que as composições da Norte-Sul passem por outras malhas.

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Renovação de concessão é mal negociada, diz especialista 

Daniel Rittner

Murillo Camarotto

23/07/2018

 

 

O governo está subestimando as exigências de investimentos das concessionárias de ferrovias para a prorrogação antecipada de seus contratos e jogando fora uma oportunidade única de modernização do setor, argumenta o economista Bernardo Figueiredo, ex-presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL).

Idealizador do plano de concessões lançado na administração da petista Dilma Rousseff em 2012, ele não se opõe ao modelo em si de renovação dos contratos, mas critica os valores negociados pelo governo como contrapartida e a falta de soluções para problemas históricos das ferrovias.

"A prorrogação das concessões é o único instrumento que se tem hoje para alavancar investimentos em ferrovias. Então, precisamos fazer isso com o máximo de cuidado. Não podemos dar mais 40 anos de contrato para um sistema ficar no padrão do século XIX. Se essas questões não forem resolvidas agora, só poderão ser atacadas novamente em 2057."

Os contratos atuais expiram entre 2026 e 2028. Para renová-los, o governo obrigará as concessionárias a construir por sua conta e risco duas grandes obras: um trecho de 383 quilômetros da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico) em Mato Grosso e o Ferroanel de São Paulo. São exigências feitas à prorrogação antecipada das concessões da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e da Estrada de Ferro Vitória-Minas, pertencentes à Vale, e da MRS Logística.

Para o especialista, é muito pouco. De acordo com ele, seria possível arrancar até quatro ou cinco vezes mais investimentos, chegar potencialmente a algo próximo de R$ 30 bilhões em contrapartidas. Com isso, Figueiredo sustenta que uma lista mais ampla de obras poderia estar sendo contemplada: não apenas o contorno da região metropolitana de São Paulo, mas também o projeto completo da Fico (que tem 880 quilômetros de extensão), a conclusão da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), a construção de uma ferrovia no Pará e a reativação da linha São Paulo-Porto Alegre - que hoje está praticamente abandonada.

"Não discuto o mérito da proposta [do governo], mas como estão chegando a esses valores", diz o ex-presidente da EPL. Ele pretende participar da audiência pública a ser aberta pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para discutir o assunto. "A Norte-Sul, por exemplo, foi precificada em R$ 1 bilhão no leilão e tem 1% da carga de Carajás."

A EFC foi recentemente duplicada pela Vale e a União teria inclusive que indenizá-la por investimentos não amortizados caso pegasse de volta o ativo ao final do contrato. No entanto, segundo o especialista, bastam quatro a cinco anos de cobrança de frete com a movimentação atual de carga pela ferrovia para deixar o negócio com valor presente líquido positivo. Ou seja, ela estaria sendo avaliada incorretamente.

Figueiredo ressalta que a questão não gira em torno simplesmente de obras, mas de soluções logísticas. Sem a criação de alternativas para escoar minérios e grãos até os portos, não se tem queda do frete. A Fico, segundo ele, deverá levar mais trens para os mesmos caminhos de hoje: a EFC (em direção ao porto maranhense de Itaqui) e a Rumo Malha Paulista (caminho de Santos).

"Não se constrói ferrovia como um fim em si mesmo. O objetivo final é baixar custo de frete, custo logístico, mas isso não acontece se são as próprias operadoras ferroviárias que se apropriam dos ganhos", afirma. Hoje, por falta de opções logísticas, as donas dos trilhos são acusadas de praticar tarifas muito próximas ao frete cobrado pelos caminhoneiros. "O risco é gastar bilhões de reais numa obra e não ter frete mais barato porque são as mesmas duas ou três empresas que detêm o acesso aos portos."

Figueiredo aponta ainda três questões aparentemente ausentes dos novos contratos e que poderiam aumentar a concorrência no setor: definição mais clara sobre direito de passagem (quando o trem de uma operadora pode passar pela malha de outra), fortalecimento da figura do operador ferroviário independente (que não é dono dos trilhos e oferece o serviço de transporte de carga por vagões próprios) e cláusulas para forçar a reativação de trechos inativos das malhas já concedidas.