Valor econômico, v.19, n.4551, 23/07/2018. Empresas, p. B4

 

Porta-voz do carro elétrico pede passagem

Mari Olmos

23/07/2018

 

 

Gleide Souza tinha 19 anos quando, em seu primeiro trabalho, na Cofap, foi "apresentada" ao porão da rebarbação. No espaço, operários retiravam rebarbas das peças de motor fundidas. Ali, ambiente sujo, sombrio e sufocante, com temperatura em torno de 45 graus, a estagiária de engenharia entendeu por que a área de fundição, pouco automatizada na época, era chamada de "a visão do inferno". Mais de 30 anos se passaram desde o primeiro contato com a realidade de uma fábrica. Desde então, Gleide testemunhou as adaptações da indústria automobilística às constantes mudanças de regras no país. Hoje, como diretora da BMW, tornou-se a porta-voz do carro elétrico no Brasil. Defendeu a causa com unhas e dentes até conseguir que o tema fosse tratado dignamente tanto por governo como por montadoras que defendem a sobrevida do carro a combustão.
Gleide entrou na faculdade de engenharia na época do "Engenheiro que virou suco", nome de uma lanchonete em São Paulo que ganhou fama por retratar a falta de perspectiva dos formados na profissão. Ao perder o emprego, o proprietário preferiu pendurar o diploma na parede da casa de sucos a continuar batendo de porta em porta.
Não havia engenheiros na família. Mas desde criança, a paulistana gostava de ver quando, vez ou outra, o pai mexia no carro da família. Na faculdade, havia só mais uma mulher na classe de engenharia mecânica. De cara, ambas tiveram que aprender a lidar com um frequente e preconceituoso comentário, dos alunos da época: "mulher que entra na FEI (Faculdade de Engenharia Industrial) é porque quer casar com algum 'FEIano'".
Na Cofap, a experiência na fundição a conduziu até a engenharia industrial. Com a caneta nanquim em mãos, coordenou a construção de uma fábrica de anéis em Itajubá, no interior paulista. De lá, ela seguiu para a Mag, empresa de manutenção e instalação de equipamentos em fábricas de veículos. O emprego a ajudou a conhecer quase todas as montadoras da época.
Apesar de fascinada pelas fábricas de carros, jamais passara pela sua cabeça que o trabalho seria tão extenuante. A gota d'água para buscar um emprego mais tranquilo foi um problema que a pegou desprevenida. Era uma sexta-feira e Gleide, em torno dos 25 anos de idade, estava feliz pelo sucesso da conclusão de um trabalho que havia coordenado: a instalação de uma linha na fábrica da General Motors em São Caetano do Sul (SP). Para relaxar decidiu sair com amigos.
Mas, ao voltar para casa, em São Paulo, onde vivia com os pais, havia o recado de um supervisor pedindo para que voltasse imediatamente a São Caetano. Uma peça mal posicionada havia travado a corrente que movimentaria a linha. Uma nova peça foi feita a toque de caixa e Gleide teve de passar o fim de semana na GM.
A simpática executiva ri ao lembrar do episódio. Poderia citar outros. "Poucos têm ideia das situações críticas que acontecem numa fábrica; mas é gratificante encontrar soluções".
Vencida, no entanto, pelo cansaço, em 1995 candidatou-se a uma vaga na área de compras na Cummins, gigante americana, fabricante de motores para veículos pesados. Num jeito humilde, Gleide confessa que naquela época não era fluente em inglês. Estremeceu ao saber que a entrevista seria com um gerente canadense e um diretor americano. Mas enfrentou o desafio e conseguiu o trabalho. A multinacional queria exatamente uma engenheira sem "vícios" em compras.
Eles estavam certos. A experiência na fundição a ajudou nas compras de molas, ruelas e anéis de vedação. "Conheça o que você precisa comprar para comprar bem", diz. Mas sentar-se à frente do computador, num escritório, a frustrava. "Me senti deslocada".
Sempre que podia, Gleide escapava para a fábrica, ao lado da sede administrativa, em Guarulhos (SP). As conversas com a equipe de manufatura a ajudavam nas compras e vice-versa. Durante os cinco anos na Cummins casou-se com um tecnólogo em mecânica e deu à luz uma menina, Natália, hoje com 19 anos.
Ainda bebê, Natália, saía de casa com a mãe às 5h40 para passar o dia na casa da avó. Mas sua vida mudou ao completar cinco anos de idade. Na época, Gleide, que trabalhava com compras na Chrysler, foi escalada para gerenciar a área numa fábrica de motores em Campo Largo (PR). O marido ficou em São Paulo e a filha partiu com ela para Curitiba.
Com sistema de produção que tornou-se referência mundial, a Tritec surgiu de uma joint venture entre Chrysler e BMW. O plano era produzir motores, exclusivamente para exportação, para modelos BMW produzidos na Europa, e da Chrysler, nos Estados Unidos.
"No trabalho, é preciso ser maleável, mas direto; a pessoa não pode demonstrar fraqueza"
O momento era perfeito para o investimento. Naquele ano, 1998, o país ainda desfrutava da estabilidade que veio com o Plano Real. Mas, um ano depois da inauguração da Tritec, o cenário econômico era outro e a produção seguiu ritmo mais lento do que o previsto. Com a então fusão da Mercedes-Benz com a Chrysler, da qual surgiu a DaimlerChrysler, a parceria da americana com BMW, rival da Mercedes, perdeu sentido.
A carreira de Gleide passou a seguir a trilha das transformações do setor, seja nas oscilações econômicas ou expansão do processo de fusões entre empresas. Com a Chrysler sob nova direção, Gleide retornou a São Paulo para trabalhar na Mercedes-Benz, em São Bernardo do Campo (SP) e foi promovida a supervisora de compras.
Em 2007, quando a joint venture entre BMW e Chrysler foi desfeita e a fábrica da Tritec vendida à Fiat, Gleide foi contratada pela BMW. Sua missão era coordenar compras internacionais e desenvolver rede de fornecedores. Mas ela ofereceu-se para ajudar no projeto de produção de motos BMW no Brasil. Certo dia, depois de um ano de idas e vindas a Manaus, o então presidente da BMW no Brasil a puxou pelo braço e disse: "esqueça as duas rodas; quero que assuma um projeto de quatro rodas".
O plano era encontrar um parceiro local para fabricar carros no país. Junto com técnicos da Alemanha, Gleide quase fechou negócio. Mas duas coisas mudaram os planos. Os alemães não estavam certos de que os carros teriam o padrão das fábricas da BMW. Mas o que mais pesou foi a criação, em 2012, do Inovar-Auto, programa automotivo que durante cinco anos estimulou a produção local e criou taxas extras de IPI para carros importados.
A executiva voou para Munique para convencer a matriz sobre a vantagem de ter uma fábrica própria no Brasil. "Fui resgatar um projeto que estava na UTI e quase morreu na Alemanha", diz. O passo seguinte foi peregrinar em busca de terreno. Araquari, em Santa Catarina, foi a escolhida para a primeira fábrica da BMW na América do Sul.
Com mais essa missão cumprida, a carreira de Gleide deu uma guinada. A BMW não tinha um diretor de relações governamentais, figura-chave na defesa dos interesses de empresas em Brasília. Gleide poderia recusar e continuar na área de compras. Deram-lhe um fim de semana para pensar. E ela aceitou. No novo cargo, a executiva começou a ganhar projeção na defesa do carro elétrico. "Decidi defender os interesses da empresa onde trabalho", afirma.
A BMW é hoje a única montadora que vende automóveis totalmente elétricos no país. Na semana passada, em parceria com a empresa de energia EDP Brasil, inaugurou um corredor com seis pontos de recarga para veículos elétricos no trecho que liga São Paulo ao Rio na Via Dutra.
Por trás da festa e do simbolismo do projeto, há um intenso trabalho daquela que se transformou numa militante do carro elétrico. Nas reuniões da associação do setor, a Anfavea, onde é vice-presidente, Gleide destaca-se como uma das lideranças de um grupo de associados mais fraco. Mas que enfrentou, com firmeza, os interesses contrários, de uma ala mais forte, e conseguiu que a redução de IPI para elétricos e híbridos entrasse nas reivindicações levadas ao governo.
Durante a carreira, Gleide aprendeu a importância de ser "maleável, mas direta". "A pessoa não pode demonstrar fraqueza".
O trabalho em Brasília também foi árduo. Quando as discussões do novo programa automotivo, o Rota 2030, chegavam ao fim, ela e outros que defendem a causa notaram que o carro elétrico não estava sendo tratado em nenhum dos seis grupos de trabalho.
Gleide partiu, então, para a batalha pelo sétimo grupo, criado em setembro e que periodicamente se reune para discutir eletromobilidade. Com representantes de empresas, entidades e governo, o grupo foi, ainda, subdividido para tratar de questões específicas, como a necessidade de mudar a infraestrutura urbana.
Com a ajuda de deputados que apoiam a ideia, recentemente Gleide participou de audiências públicas na Câmara e no Senado, onde fez exposições sobre tudo que envolve os veículos elétricos e os desafios no Brasil.
Há poucos dias, o governo reduziu a alíquota de IPI de híbridos e elétricos de 25% para uma faixa que vai de 7% a 20%. A executiva confessa ter se frustrado. Esperava redução maior. Mas considera um passo importante.
Aos 51 anos, a executiva diz que nunca imaginou um dia chegar tão perto de uma tecnologia como essa. Gleide sabe que no futuro o motor a combustão pode se tornar peça de museu. Apesar disso, seus olhos brilham ao lembrar que foi a experiência numa fundição que a conduziu por novos caminhos.