Correio braziliense, n. 20379, 08/03/2019. Economia, p. 7

 

Estado sustenta 93,4 milhões de brasileiros

Simone Kafruni

Marília Sena

08/03/2019

 

 

Quase 45% da população - incluindo servidores públicos, aposentados e beneficiários de mecanismos de transferência de renda - vivem com recursos públicos. Importantes para reduzir a desigualdade, programas sociais esbarram no deficit das contas do governo

Quase metade da população do Brasil depende do Estado. Entre beneficiários de transferências federais, que somam 78,4 milhões, e servidores públicos, militares e seus aposentados (15,4 milhões), são 93,4 milhões de pessoas vivendo do dinheiro público. Se for considerada a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 209,6 milhões de habitantes no país, 44,7% dos brasileiros precisam do Estado. Não à toa, as contas públicas não fecham e o endividamento é crescente. O sinal vermelho, contudo, já está aceso e, nos últimos anos, o crescimento dos dependentes desacelerou.
Para Renan De Pieri, professor de economia do Insper, o inchaço começou com a Constituição de 1988, que estabeleceu demandas sociais e criou benefícios para atendê-las. “Por um lado, isso trouxe distribuição de renda e queda na desigualdade. Por outro, criou uma armadilha: um orçamento extremamente engessado”, ponderou. Com o aumento constante de gastos, a saída foi aumentar impostos para bancar a dependência. “Só que a carga tributária chegou a um limite, e não há espaço político para mais tributos. É necessário cortar gastos e reduzir essa dependência”, assinalou.
Fernando Montero, economista-chefe da Tullett Prebon Brasil, ressaltou que, apesar de também serem dinheiro público, os salários do funcionalismo são pagos em troca do trabalho. “O Estado representa um terço do PIB (Produto Interno Bruto) do país. Não é estranho que tantas pessoas dependam dele. Agora, transferência significa que alguém está recebendo sem fazer nada”, afirmou.
Montero somou programas de assistência social, pensões e aposentadorias e chegou ao número de 32,9 milhões de idosos com benefícios. “Se o IBGE diz que o Brasil tem 30 milhões de pessoas com mais de 60 anos e nem todos são aposentados ou miseráveis, essa conta não fecha”, ressaltou —ou seja, várias pessoas têm mais de um benefício. É o caso de Atarcílio Fernandes, 80 anos, que veio de Rondônia para Brasília após a morte da esposa. Ele recebe duas aposentadorias: uma da mulher falecida e a outra, fruto do seu tempo de trabalho. O dinheiro é suficiente para viver. “Ajudo nas despesas da casa da filha com R$ 100, compro roupas, calçados e guloseimas. Ainda estou juntando dinheiro para comprar minha casa”, disse.
Abismo social
O professor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), Marcelo Neri, lembra que 3,7% da população é servidor estatutário, 0,61% com carteira assinada e 1,13% sem carteira, um total de 11,2 milhões de funcionários públicos. “O Benefício de Prestação Continuada (BPC), atinge 1,8% da população; o Bolsa Família, 4,63%; e 0,27% são beneficiados com outros projetos sociais. São programas que redistribuem renda”, alertou.
O especialista usou o Índice de Gini, que mede a desigualdade social (sendo -1 pró-pobres e 1 pró-ricos), do país, que é 0,5492, muito alto, e fez comparações por benefícios. “No caso da Previdência, o índice de concentração é 0,5321, quase tão alto quanto o geral; portanto reproduz a desigualdade. Já o BPC é -0,0546 e o Bolsa Família, -0,6325. Ou seja, os dois últimos reduzem o abismo social”, afirmou. Outro cálculo, disse Neri, é verificar quanto cada real gasto pelo Estado retorna para a economia. “No caso da Previdência, é R$ 0,52, enquanto o BPC é R$ 1,10 e o Bolsa Família, R$ 1,78”. Ou seja, os dois últimos fazem a economia girar, enquanto a Previdência é deficitária.
Dias contados
Moradores da Estrutural, Josiane da Silva Costa e Gilvan da Silva Melo, juntos há seis anos e responsáveis por dois adolescentes, filhos dela, e por uma criança de dois anos e meio, filha do casal, dependem das políticas públicas: o Bolsa Família e o Bolsa Auxílio de um curso de corte e costura oferecido pelo Governo do Distrito Federal. Com os dois benefícios, a renda mensal é de R$ 600, mas está com os dias contados. Os filhos adolescentes não estão na escola por falta de vagas na rede pública e o curso que Josiane frequenta acaba em quatro meses. “Preciso trabalhar, mas ainda não tenho formação e não encontro emprego. Também me falta capital para começar o meu próprio negócio”, lamentou.
Montero avaliou que o quadro retrata um país ainda rural, com quase 10 milhões de aposentados no campo; inválidos, doentes e viúvas; cheio de pescadores artesanais; aposentados muito novos, com seguro-desemprego que cresce quando o desemprego cai, e abono salarial para mais da metade das carteiras assinadas. “O único benefício que vai para criança, a custo ínfimo, é o Bolsa Família.”
Segundo ele, a redução dos dependentes começou quando o rombo das contas públicas ficou insustentável. “De 2015 a 2018, o total de benefícios cresceu apenas 1,4%, ou 0,35% ao ano. Nos quatro anos anteriores, de 2010 a 2014, a alta foi de 17,3%, ou 4,1% ao ano”, explicou. “Auditorias e pentes-finos na concessão de benefícios dão resultado. Houve desaceleração no contingente de aposentados por invalidez e, especialmente, auxílio-doença”, pontuou.
Para Marineide de Souza, 62, aposentada por invalidez devido a problemas cardíacos, o benefício não permite uma vida digna. “Gasto 60% do salário mínimo com medicamentos”, disse. Moradora de um barraco no bairro Santa Luzia, na cidade Estrutural, contou que há dias em que é difícil até comprar um sabonete e a comida no lar é escassa. “É uma situação injusta, porque comecei a contribuir aos 17 anos. Tento conseguir bicos para viver uma vida decente, mas ainda não consegui nada”, lamentou.