Valor econômico, v.19, n.4549, 19/07/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Boa-fé nas colaborações premiadas

André Luís Callegari

Raul Marques Linhares

19/07/2018

 

 

A lógica negocial, com a concessão de uma espécie de "prêmio" ao agente que colabora com a Justiça, não é recente no processo penal brasileiro. É possível mencionar a presença dessa característica na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, na Lei de Crimes Tributários e na Lei de Lavagem de Dinheiro.

Mesmo assim, foi a partir da Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013) que essa prática passou a ocupar uma posição de maior destaque no processo penal. Agora, é a conhecida figura do acordo de colaboração premiada. Isso ocorreu em decorrência de importantes funções atribuídas a esse instituto: possibilitar maior efetividade nas investigações envolvendo organizações estruturadas e servir de estímulo para que integrantes da organização contribuam com o esclarecimento dos fatos em troca de um abrandamento das sanções aplicadas.

De maneira direta, então, a colaboração premiada surgiu não como um meio de prova, mas como um meio de obtenção de elementos de provas, como, aliás, consta no artigo 1º dessa lei.

Quanto maior a propensão do Estado à rescisão dos acordos, maior a insegurança a que serão expostos os possíveis colaboradores

Há um elemento que recebe destaque especial e que serve de pressuposto para o sucesso da colaboração premiada - e, consequentemente, para as investigações e processos que buscam a persecução de organizações criminosas. Trata-se do elemento "vontade" do agente colaborador. Sem isso, a colaboração não existe.

A importância da vontade no acordo de colaboração decorre da própria natureza contratual desse instituto, há muito tempo reconhecida de maneira uniforme pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse sentido, com propriedade, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes se referiram à colaboração premiada como um "negócio jurídico processual personalíssimo" em casos analisados na Corte.

Outros ministros também já fizeram referências ao instituto. O ministro Marco Aurélio disse que a colaboração premiada é "negócio jurídico-penal". Gilmar Mendes afirmou que se trata de "obrigações contratadas". Dias Toffoli entende que o "acordo de colaboração é o contrato negocial". Celso de Mello fez menção a "pacto negocial". Ricardo Lewandowski chamou o instituto de um "contrato de Direito Público".

Nesse cenário, é possível afirmar que o acordo de colaboração premiada é um verdadeiro contrato que se perfectibiliza por meio de um acordo de vontades entre as partes negociais. Desse modo, a colaboração tem como elemento nuclear a exteriorização de vontade das partes envolvidas no acordo - de um lado o Ministério Público ou a polícia e, de outro, o investigado/acusado, como bem explanado na obra "Colaboração premiada (Lei nº 12.850/2013): natureza jurídica e controle da validade por demanda autônoma: um diálogo com o Direito Processual Civil", de Fredie Didier Jr. e Daniela Bomfim.

Diante dessas condições, há um raciocínio que se torna inevitável. Assim como um cenário de insegurança econômica desestimula a celebração dos mais variados contratos privados, provocando a retração da economia, um cenário de insegurança jurídica em relação aos resultados da colaboração premiada perante o colaborador atua como fator de desestímulo à celebração desse acordo. Isso porque fulmina justamente o seu elemento essencial: a existência de vontade (efetivação da vontade).

Dessa relação - insegurança jurídica e desestímulo para a colaboração - decorre a necessidade de se primar pela não rescisão de acordos de colaboração premiada. Afinal, o acordo de colaboração é um negócio jurídico que não apenas vincula o agente colaborador às obrigações por ele assumidas, mas vincula também o Estado para que cumpra com o que foi pactuado. Se não fosse assim, haveria deslealdade de parte de um dos contratantes (Estado).

Assim, homologado o acordo pela autoridade judicial competente, é preciso atribuir status de ato jurídico perfeito, como dispõe o inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal. O ministro Celso de Mello, na Pet 7074, afirmou que "o acordo de colaboração premiada, devidamente homologado, vincula o Poder Judiciário no julgamento final da causa penal, desde que as obrigações assumidas pelo agente colaborador tenham sido por este efetivamente cumpridas, sob pena de ofensa ao princípio da segurança jurídica e aos postulados da confiança e da boa-fé objetiva".

Segundo ele, "o acordo de colaboração premiada, desde que regularmente homologado pelo Relator da causa, configura ato jurídico perfeito, do qual resulta, quando fielmente executado pelo agente colaborador, direito subjetivo apto a garantir-lhe acesso aos benefícios de ordem legal".

Dessa forma, a segurança jurídica aparece como um fator de viabilidade para o instituto da colaboração premiada. Quanto maior a propensão do Estado à rescisão dos acordos, maior a insegurança jurídica a que serão expostos os possíveis colaboradores e, consequentemente, menor será seu interesse na celebração.Evitar a rescisão sem a análise de tudo que foi pactuado e ponderar o adimplemento do que foi cumprido no acordo de colaboração são medidas necessárias para a preservação desse instituto. Assim, resguarda-se a confiança do agente colaborar com a Justiça sem o receio de ter o acordo rescindido.