Correio braziliense, n. 20375, 04/03/2019. Economia, p. 6

 

Preservar para viver

Simone Kafruni

04/03/2019

 

 

A vida na Terra está ameaçada. A necessidade de produzir riqueza e promover o crescimento econômico se sobrepõe aos cuidados com a sustentabilidade dos recursos naturais. A lama derramada em Brumadinho é apenas um exemplo, entre milhões, do que o ser humano está disposto a colocar em risco em troca do vil metal. Poluir rios, desmatar florestas, emitir gases de efeito estufa e usar fontes de energia que agridem o planeta de forma irreversível são práticas tão comuns que não se presta atenção no quanto são prejudiciais à própria vida.

O Brasil é campeão em desmatamento e está entre os cinco maiores emissores de gases de efeito estufa (GEE). O país também tem os maiores mananciais de água doce do mundo; portanto, os desafios para assegurar a sustentabilidade dos recursos naturais são enormes. Para apontar alguns deles e também mostrar iniciativas que estão dando certo para mitigar os problemas, o Correio começa hoje uma série de matérias que vai abordar a importância da preservação dos quatro elementos — água, ar, terra e fogo — para a garantir a vida no planeta e o crescimento econômico sustentável.
Ciclo vicioso
Vinícius Picanço, coordenador do Centro de Empreendedorismo do Insper, observa que os quatro elementos são interligados e todos acabam no ar. “A emissão de gases influencia o padrão de chuvas e provoca mudanças climáticas. Isso vai impactar na terra, na produção de alimentos, e também na geração de energia (fogo) limpa, porque, se não chover, é preciso usar termelétricas — que emitem mais gases”, ressalta. 
É um ciclo ainda vicioso, mas que pode se tornar virtuoso, porque existem tecnologias para mitigar os problemas, diz Picanço. “Isso é o que mais me dói. Tem como evitar, mas não há planejamento de longo prazo no Brasil. Aqui, a política é apagar incêndio. Reage quando sente na pele. Fazem-se planos de governo, mas poucas políticas de Estado.” Quando se fala do planeta, os efeitos não ocorrerão amanhã, mas daqui a 10, 20 anos. “Porém, de forma acumulada”, emenda.
O impacto ambiental dos padrões de consumo do brasileiro, rico em proteína animal, afeta o mundo todo. A indústria da carne é uma das principais responsáveis pelo aquecimento global, porque a fermentação entérica, processo digestivo dos herbívoros, emite metano (CH4), um gás mais prejudicial para a camada de ozônio do que o dióxido de carbono (CO2). A degradação de alimentos, seja na fase de produção, seja no desperdício e nos lixões, produz óxido nitroso (N2O), ainda mais potente na destruição do ozônio.
Para Denise Conselheiro, gerente de Educação do Instituto Akatu, ONG que trabalha pela conscientização e mobilização da sociedade para o consumo consciente, é importante consumir com mais racionalidade e reduzir os impactos ambientais. Informação é essencial nesse processo, porque o consumidor precisa saber o que está envolvido na produção, no uso e no descarte. “Precisamos ter uma sociedade diferente daquela que temos hoje. Por isso, fazemos um trabalho de educação para a sustentabilidade, desde resíduos, consumo de água, energia, alimentação, com foco em crianças e jovens”, conta.
Para garantir a vida no planeta, é preciso repensar hábitos de consumo, desde o lixo que poderia ser aproveitado, até a real necessidade de algumas coisas. “O canudinho, por exemplo, para pessoas enfermas talvez se justifique. Mas não precisa dele para mexer uma caipirinha. É uma coisa que demanda mão de obra, energia, água, plástico e que se usa por segundos”, assinala. Uma lei distrital sancionada recentemente proíbe o uso de canudos e copos de plástico na capital do país.
A especialista alerta que os padrões de consumo aumentam a sobrecarga do planeta. “Em 2000, o dia da sobrecarga da terra foi 15 de outubro. Este ano, será 1° de agosto. Passamos quase meio ano sobrecarregando o sistema”, destaca. Por isso, a necessidade de uma transição rápida. “Há pouco tempo de reação. No Brasil, o uso da terra é o principal responsável pelo aquecimento global. O padrão de consumo é o segundo. Para produzir um quilo de carne, são usados 15 mil litros de água”, explica. Apenas 10% do consumo de água são de uso direto e doméstico. Os 90% restantes estão nas coisas que se consome.
Empresas
Além do consumo, a mudança também precisa partir dos negócios, explica o professor Celso Lemme, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O papel das empresas numa economia capitalista é ser o braço econômico dos objetivos da sociedade. Se preciso de energia, alguém vai lá e produz. Existe uma pressão por resultados a curto prazo de investidores e da sociedade civil”, afirma.
Uma agenda para reverter a sequências de tragédias, como a de Brumadinho, seria mudar a visão de horizonte do investimento. Lemme explica que o capital industrial e o financeiro são fundamentais ao desenvolvimento. “Infelizmente, não consideramos o capital natural, que também é essencial. Esses desastres decorrem de uma visão míope, que não enxerga o capital humano e ambiental, sem os quais não há os demais”, sublinha. A mudança, ainda que lentamente, está ocorrendo, diz. Hoje, existe uma análise financeira que considera a gestão de recursos naturais das empresas. A sigla ASG (ambiental, social e governança) começa a despontar nos balanços.
Lemme diz que os conselhos de administração precisam ter stakeholders de outras áreas, para que a empresa considere a visão de diversos atores. “A diretoria tem que levar propostas, mas o conselho tem que ver com os olhos de comunidades vizinhas, do meio ambiente, para avaliar o futuro da empresa”, ressalta.
Demandas
A melhor forma de ter mais lucros por muitos anos é garantir a sustentabilidade para atender as demandas da sociedade. “Os executivos pensam se vão dar ênfase às questões financeiras ou ambientais e sociais. Mas não é ‘ou’ é ‘e’. A ênfase tem que ser em todos os aspectos, combinando os três tipos de capital: ambiental, social e financeiro. Eles não estão um contra os outros. Estão juntos para articular o desenvolvimento sustentável”, afirma.
Nem todos os especialistas acreditam na capacidade de produzir riquezas e preservar o meio ambiente. O professor do Departamento de Análise Geoambiental da Universidade Federal Fluminense Sergio Ricardo Barros afirma que não há possibilidade de crescimento econômico com sustentabilidade. “No contexto do capitalismo atual, isso é uma utopia. O desenvolvimentismo trabalha com exploração maciça dos recursos naturais”, argumenta.
Para Barros, o modelo não se sustenta. “Para garantir sustentabilidade, teriamos de mudar tudo o que conhecemos. Já rompemos a resiliência planetária, no sentido de tempo de recuperação para que se possa ter de novo uma economia realmente sustentável”, afirma. O professor diz que a visão centro-periferia resiste há séculos. “Parece que os países periféricos nunca vão alcançar a sustentabilidade por serem fornecedores de recursos naturais para  o primeiro mundo”, destaca.
Segundo Barros, os países que estão mais preocupados em gerar riqueza por meio de formas não produtivas e sustentáveis empurram para os países periféricos, como o Brasil, o ônus de destruir seu meio ambiente por intermédio da produção exploratória. “Isso nunca mudou. Como mudar com uma periferia enorme? Como dizer que tem que ser sustentável, se numa favela não tem nem coleta de lixo?”, indaga.
“Precisamos ter uma sociedade diferente daquela que temos hoje. Por isso, fazemos um trabalho de educação para a sustentabilidade, desde resíduos, consumo de água, energia, alimentação, com foco em crianças e jovens”
Denise Conselheiro, gerente de Educação do Instituto Akatu

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Água: aumento do uso acende alerta

Simone Kafruni

04/03/2019

 

 

 

 

O elemento água está presente em quase tudo na Terra. Dois terços do planeta é composto por água. No entanto, apenas 2,5% é doce, e a maior parte está presa nas geleiras das calotas polares. A economia não gira e a sociedade não vive sem recursos hídricos, mas é preciso se contentar com 0,5% do suprimento disponível para uso. Contudo, a demanda mundial deverá aumentar 40% até 2030 e 55% até 2050, ano no qual se estima que mais de 40% da população mundial viverá em áreas de grave estresse hídrico.

No Brasil, que tem a sorte de estar sobre o maior aquífero do globo, o Guarani, a demanda aumentou 80% nas últimas duas décadas, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). A previsão do órgão é de que, até 2030, a retirada aumente 24%. “O histórico da evolução dos usos da água está diretamente relacionado ao desenvolvimento econômico e ao processo de urbanização do país”, diz estudo da agência. No entanto, o maior consumo de água em termos é na irrigação agrícola.
O chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente, Marcelo Augusto Boechat Morandi, explica que a demanda por água para a agricultura irrigada no mundo aumentará de 2.600 quilômetros cúbicos (km³) em 2005 para 2.900 km³ em 2050. Cada km³ equivale a um trilhão de litros. “Para efeito de comparação, o Lago Paranoá, em Brasília, tem 0,5 km³”, explica o especialista.
O uso da água no meio rural representa 83% da demanda de captação de água total brasileira, dos quais 72% são destinados à irrigação, prática em franca expansão no Brasil. Passou de 462 mil hectares em 1960 para 6,1 milhões de hectares em 2014, em especial por meio de pivôs centrais. “Assim, uma necessidade para o presente e o futuro é tornar mais eficiente a prática da irrigação. Estima-se hoje uma perda de 40% devido a sistemas inadequados de irrigação ou vazamentos nas tubulações”, diz Morandi.
Poluição difusa
Outra preocupação é com a qualidade da água, uma vez que é no espaço rural que nascem os grandes mananciais de abastecimento. Apesar de a poluição urbana ser a principal fonte de degradação, a poluição difusa de origem rural, causada pela elevada utilização de fertilizantes e pesticidas e pela perda de solos por processos erosivos, têm alto impacto. “A distribuição da água não é homogênea entre as regiões. Enquanto o Norte detém 68,5% da água doce disponível, o Nordeste tem apenas 3,3%”, compara. Nas demais regiões a disponibilidade é de 15,7% no Centro-Oeste; 6,5% no Sul; e 6% no Sudeste. “A distribuição das reservas não acompanha a concentração populacional nem a demanda hídrica das diferentes partes do país”, emenda.
O especialista em água do Banco Mundial Thadeu Abicalil explica que a escassez de água é uma relação permanente. “Em muitos locais, como São Paulo e Minas Gerais, a demanda é sempre maior que a disponibilidade hídrica”, explica. Quando falta, é preciso gerenciar o uso prioritário, uma vez que a água é essencial também para geração de energia, além do abastecimento rural e do consumo humano.
“A crise hídrica acontece quando fenômenos climáticos ou de gestão estressam a relação. Usar água do reservatório, quando no período seguinte pode faltar, é gestão. Mas existem fenômenos também, como a seca no semiárido de 2012 a 2018, ou no Distrito Federal em 2017 e em São Paulo em 2015”, lembra.
Abicalil destaca que a crise hídrica também está associada a excesso de água. “Com as mudanças climáticas, aumentou a variabilidade de chuvas. Podemos ter mais secas e mais enchentes. O cenário atual é de volatilidade”, ressalta. Chuvas em volume muito superior à capacidade de armazenamento representam um problema. Segurança hídrica é gerenciar a crise de seca e o armazenamento no excesso. “O Brasil está avançando neste conceito e há uma melhora da capacidade de enfrentar os eventos climáticos extremos. Mas o país recém saiu do estágio que chamo de crise hidrológica, de ações apenas emergenciais”, iz.
Controle da situação é agir mesmo quando o sistema está funcionando bem. “Como o Nordeste enfrenta secas prolongadas, medidas como a transposição do Rio São Francisco se fizeram necessárias”, assinala. Brasília e São Paulo, que viveram crises agudas, saíram delas com conhecimento e mantiveram a economia. A infraestrutura e a conscientização das populações melhoraram. “Em São Paulo, foi feito bônus tarifário para quem economizou. Brasília, racionamento. Ambas as cidades reduziram o consumo e o efeito pós-crise resultou em consumo menor. Isso é gestão de risco”, explica.
Antes do risco, no entanto, é preciso melhorar o uso da água que existe. Gerenciar a proteção das nascentes e o entorno dos reservatórios e criar infraestrutura são medidas fundamentais. “Isso envolve aspectos econômicos, o valor da água. Se a disponibilidade é insuficiente se constrói barragem, adiciona infraestrutura”, ressalta o especialista do Banco Mundial.
Florestas
A proteção das nascentes e das florestas deve ser o primeiro passo, na opinião do professor do Departamento de Engenharia Sanitária e do Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Adacto Benedicto Ottoni. “Uma das principais formas de degradação da água é o desmatamento. O aumento das inundações está correlacionado com o aumento da seca. A chuva não cai igualmente o ano todo, há mais meses de seca do que de chuva. E a natureza produz água doce na estiagem por meio da floresta”, afirma.
A floresta infiltra 80% da água da chuva e presta um serviço ambiental, retendo a água no solo. “Além de amortecer as enchentes, essa água subterrânea é que alimenta o rio na seca. Se desmatar, agrava a erosão do solo e a água é perdida. Vai para o mar e fica salgada”, assinala Ottoni. “A melhor forma de evitar risco é reflorestando a bacia. Se parar de desmatar já resolve”, acrescenta.
O professor lembra, ainda, que a legislação brasileira garante a proteção das nascentes. “É só seguir o Código Florestal, segundo o qual, com raras exceções, as áreas íngremes com inclinação acima de 45 graus e faixas de proteção de rios não podem ter ocupação a não ser mata ciliar. A lei é boa, mas não é cumprida”, denuncia. Nas áreas produtivas, o especialista defende a recarga artificial da água subterrânea. “É possível fazer valas de infiltração de encostas, isso aumenta a umidade do solo”, recomenda.
Garantir o saneamento básico nas áreas urbanas também evita que a água das enchentes se perca. Como as cidades são impermeabilizadas pelo asfalto, é preciso investir em infraestrutura, diz Ottoni. “Tem que recolher o lixo para não assorear o esgoto; é preciso um programa de educação ambiental; também é possível aumentar permeabilidade, construindo estacionamentos com material poroso, que permite infiltração”, enumera. “O homem não precisa degradar para se desenvolver. A saída é fazer gestão sustentável”, emenda.
Dessalinização
A dessalinização é uma alternativa utilizada no sertão e no agreste nordestino, onde a água subterrânea é de pouca produção e tem alto teor de sal. “Já existem pequenos sistemas comunitários. O Brasil domina esta tecnologia”, destaca Thadeu Abicalil, do Banco Mundial. Segundo ele, Fortaleza está em período de consulta pública para poder dessalinizar numa grande planta. “Isso é uma solução adotada em muitos países. Jordânia, Austrália, Espanha, Israel são exemplos. Outra é o reúso”, afirma.
Regiões de escassez hídrica e grande demanda industrial e agrícola devem reutilizar a água tratada. “Paulínia (SP) tem uma planta que pega parte do esgoto tratado, leva para uma estação avançada e gera uma água com potencial na indústria. Isso também pode ocorrer para reúso agrícola. Países utilizam para fruticultura. O reúso é uma forma de uso do esgoto para alcançar segurança hídrica”, explica.
No entender de Fabiana Alves, da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil, o país tem poucos projetos de reúso de água. “São quase 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta de esgoto, o correspondente a 47,6% da população total do país. Além disso, apenas 46% do esgoto coletado é tratado. O problema de saneamento, que é algo básico, dimensiona quão longe estamos de falar em reúso de água no Brasil”, denuncia.
Fabiane lembra que o desastre de Brumadinho, onde uma barragem de rejeitos de minério colapsou, provocou contaminação de metais pesados provados em análises da ANA e da SOS Mata Atlântica por quase 300 quilômetros de rio. “Portanto, a água não pode ser utilizada sem tratamento, seja para consumo, humano, animal, ou para atividades agrícolas”, lamenta.
2.900 km³
Previsão do consumo global de água em 2050. Cada km³ corresponde a 1 trilhão de litros