O globo, n. 31285, 03/04/2019. Mundo, p. 24

 

Contra a história

Marcelo Ninio

03/04/2019

 

 

Bolsonaro e Araújo repetem que nazismo foi de esquerda

No dia em que visitaram em Israel o Museu do Holocausto, o presidente Jair Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo, insistiram em declarar que o nazismo foi um movimento de esquerda. A tese é contestada pela grande maioria dos historiadores, incluindo os especialistas do memorial que documenta o extermínio de seis milhões de judeus pelos nazistas —que também, ainda antes da Segunda Guerra Mundial, prenderam milhares de comunistas, socialdemocratas, ciganos, homossexuais e outros indivíduos considerados indesejáveis.

—Não há dúvida, né? Partido Socialista, como é que é? — respondeu Bolsonaro quando questionado por um repórter se concordava com as declarações de Araújo acerca da natureza ideológica do nazismo, que governou a Alemanha de 1933 a 1945.

E em seguida completou: —Partido Nacional Socialista da Alemanha.

O nome completo da legenda de Adolf Hitler era Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães.

A visita ao Museu do Holocausto seguiu um protocolo que sempre integra as agendas de líderes estrangeiros em viagens oficiais a Israel. Após a cerimônia de reacendimento da “chama eterna” em homenagem às vítimas, o presidente bateu continência, num gesto incomum entre os líderes civis que passam pelo ritual.

— Tendo o coração sido tocado ao voltar à Terra Santa, deixo apenas duas mensagens. Como cristão, o que está na Bíblia, João 8:32, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. E a outra é uma frase minha que creio que cabe neste local, onde fazemos um exame de consciência. Aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro. Eu amo Israel —disse Bolsonaro.

Site do museu desmente

A citação de versículo bíblico é uma constante nos pronunciamentos de Bolsonaro. Já a frase que o presidente atribuiu a sua autoria aparece com variações na escrita de vários autores, entre eles o filósofo espanhol George Santayana (1863-1952), para quem “aqueles que não podem lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”.

A memória dos horrores da Segunda Guerra também foi alvo de revisionismo da parte do chanceler brasileiro, que já havia voltado ao tema antes da fala do presidente.

— Nestes últimos dias, têm surgido várias publicações, artigos, que procuram identificar um pouco isso, sob a perspectiva que eu procurei apontar, de ver semelhanças, proximidades, entre esses movimentos nazistas da Europa da metade do século XX e movimentos de extrema esquerda — disse Araújo a jornalistas, sem citar fontes. — Muitas vezes a associação do nazismo com a direita foi usada para denegrir movimentos que são considerados de direita, movimentos conservadores, que não têm nada a ver com o nazismo.

Na visita ao Yad Vashem (nome hebraico do Museu do Holocausto), Araújo disse que não esteve com pesquisadores da instituição. Caso tivesse conversado com eles, sua tese teria sido rebatida sumariamente. No site do museu, o movimento liderado por Adolf Hitler é descrito com o fruto de “grupos radicais de direita”. Em entrevista ao GLOBO em outubro, o embaixador alemão no Brasil, Georg Witschel, já havia contestado a relação entre o nazismo e movimentos de esquerda, afirmando que “é simplesmente uma besteira”. Já o historiador Wulf Kansteiner, da Universidade de Aarhus, disse na semana passada à TV pública da Alemanha, Deutsche Welle, que “nenhum especialista sério considera hoje o nazismo de alguma forma um fenômeno de esquerda”.

Para Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, a declaração do presidente é “basicamente uma tentativa de reescrever a História” que pode isolar internacionalmente o país.

—Não é só uma questão ideológica, o nazismo foi um regime profundamente nacionalista, enquanto os socialistas eram um alvo —afirma. —Essa tentativa de reescrever a História é um sintoma da ascensão de governos nacionalistas. Essa insistência pode ser vista por alguns países como uma atitude de má-fé, para legitimar um tipo de política nacionalista.

Pela manhã, Bolsonaro participou de um evento com empresários brasileiros e israelenses com a presença do premier de Israel, Benjamin Netanyahu. Em declaração ao GLOBO, Netanyahu elogiou o estabelecimento de um escritório de representação comercial do Brasil em Jerusalém, principal decisão anunciada na visita do presidente a Israel.

— É muito importante — disse Netanyahu. — Tanto do ponto de vista econômico quanto político.

Um diplomata que acompanhou as negociações disse ao GLOBO que Israel fez pressão até o último momento para que Bolsonaro cumprisse sua promessa de estabelecer a embaixada brasileira em Jerusalém, mas que o Brasil acabou pesando os danos que a decisão poderia causar em suas relações com o mundo árabe e optou pela criação de um escritório sem status diplomático.

Alusão indireta a Ustra

O último compromisso de Bolsonaro em Israel foi encerrado com um gesto inesperado. Em encontro com admiradores brasileiros que vivem no país, o presidente lembrou seu discurso na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, símbolo da repressão no regime militar.

Sem citar nominalmente o coronel, ele lembrou seu voto na Câmara dos Deputados em 2016, que dedicou à memória de Ustra. O militar, morto em 2015, comandou o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações) em São Paulo no auge da repressão.

— A verdade tinha que ser conhecida. Um dono de um instituto de pesquisa, alguns dias depois falou que depois daquele voto meu, não pelo voto, mas pelo que eu falei, eu não mais me elegeria sequer vereador da capital do meu estado, o Rio de Janeiro. E aconteceu exatamente o contrário —disse o presidente.

Após o encontro, um jornalista questionou Bolsonaro sobre os motivos que o levaram a lembrar a homenagem a Ustra. Com semblante fechado, o presidente não respondeu, limitando-se a dizer: “Mais alguma pergunta?”.

“Não há dúvida, né? Partido Socialista, como é que é? Partido Nacional Socialista da Alemanha

Jair Bolsonaro, presidente, sobre o partido nazista de Hitler

“Muitas vezes a associação do nazismo com a direita foi usada para denegrir movimentos (...) de direita que nada têm a ver com nazismo

Ernesto Araújo, chanceler, sobre o nazismo

“Essa tentativa de reescrever a História é um sintoma da ascensão de governos nacionalistas

Guilherme Casarões, professor da Fundação Getúlio Vargas