O globo, n. 31283, 01/04/2019. País, p. 6

 

Planalto compartilha vídeo que exalta golpe de 64

Amanda Almeida

Gustavo Maia

01/04/2019

 

 

Encaminhado a jornalistas por um telefone da Secretaria de Comunicação da Presidência, filme de quase dois minutos diz que Exército ‘salvou’ o país; material foi replicado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente

Um vídeo que trata o golpe de 1964 como um momento da História em que o Exército “salvou” o Brasil foi compartilhado ontem pelo Palácio do Planalto via aplicativo de mensagens de celular. Num tom consonante com as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a ditadura, o material foi encaminhado a jornalistas por um telefone da Secretaria de Comunicação da Presidência.

Ontem, o movimento, que culminou com a derrubada do ex-presidente João Goulart e com o início de 21 anos de ditadura, completou 55 anos. O período foi marcado pelo fechamento do Congresso Nacional, cassação de direitos políticos, perseguição e tortura de adversários políticos, além de censura à imprensa. Nas últimas duas semanas, Bolsonaro causou polêmica ao determinar a comemoração da data. Criticado, disse que a intenção do governo era, na verdade, “rememorar” o dia.

No vídeo, um senhor diz que quem tem a idade dele se lembra de um momento de “escuridão” para o país. Descreve essa época como um “tempo de medos e ameaças”, em que os “comunistas prendiam e matavam seus compatriotas”. Sugere aos jovens que consultem jornais e filmes do período para saber que “havia medo no ar”, “greve nas fábricas”, “insegurança”. O narrador diz, então, que o Brasil se “lembrou” que “possuía um Exército” e, de acordo com ele, o povo conclamou a ação dos militares.

“O Exército nos salvou. O Exército nos salvou. Não há como negar. E tudo isso aconteceu num dia comum de hoje, um 31 de março. Não dá para mudar a História”, diz o apresentador do vídeo. Com quase dois minutos, o material não tem um selo indicando sua origem e termina com a mensagem de que os militares não querem “palmas e nem homenagens”. “O Exército apenas cumpriu o seu papel”, registra o filme.

Na última sexta-feira, liminar de uma juíza da 6ª Vara Justiça Federal em Brasília chegou a proibir o governo de comemorar o aniversário do golpe. Ela atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União. A Advocacia-Geral da União (AGU), então, recorreu da decisão. “Tendo em vista que existem eventos agendados para amanhã (sábado) e domingo (ontem), dado o tamanho do Brasil e capilaridade das Forças Armadas, algumas unidades estão devidamente preparadas para a realização das cerimônias”, argumentou a AGU no recurso. Uma desembargadora de plantão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região derrubou a decisão e liberou os atos alusivos a 64.

"Brasil liberto"

O vídeo foi compartilhado, via redes sociais, pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente. Junto da peça, ele escreveu: “Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares de 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”.

A Secretaria de Comunicação da Presidência da República confirmou ao GLOBO que o vídeo foi distribuído por um grupo de transmissão de mensagens do Planalto, mas disse que não comentaria o teor da peça.

Ainda na manhã de sextafeira, atendendo à determinação do presidente da República, o Exército realizou uma cerimônia no pátio do Comando Militar do Planalto. O golpe, nas palavras do mestre de cerimônias do evento, virou um “momento cívico-militar”.

O ato foi realizado mesmo com recomendações do Ministério Público Federal (MPF) para que o golpe de 1964 não fosse comemorado. Após a indicação do MPF, o governo alterou o termo escrito em sua agenda pública: saiu “solenidade comemorativa” e entrou “solenidade alusiva”a64.

O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, e outras autoridades participaram do ato de sexta, que contou com cerca de 350 militares das mais diferentes unidades do Comando Militar do Planalto.

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Manifestações em capitais lembram vítimas da ditadura

Cleide Carvalho

Elisa Martins

Juliana Dal Piva

01/04/2019

 

 

Em São Paulo, houve confusão entre grupos contrários e a favor do golpe militar

Grupos protestaram ontem em diversas cidades do país, entre elas as capitais Rio, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, contra o golpe de 64, que completou 55 anos e culminou numa ditadura militar de 21 anos. Também houve manifestações pró-golpe. Em Israel, onde o presidente Jair Bolsonaro cumpre agenda oficial, houve protestos contrários a 64. Bolsonaro, nos últimos dias, sugeriu que a data fosse “rememorada.” As manifestações ainda ganharam espaço nas redes sociais.

São Paulo teve duas manifestações contra 64. A maior delas foi no Parque do Ibira puera, no fim da tarde. Pelos cálculos da Guarda Civil Municipal, entre cinco mile oito mil pessoas participaram. Muitas usavam preto — pedido que circulou pelas redes sociais —, e uma caminhada em silêncio seguiu rumo ao monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos, no próprio parque.

O outro protesto ocorreu na Avenida Paulista, onde houve confusão entre grupos contra e a favor do golpe. Um boneco em referência a Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi, foi queimado. A deputada federal Carla Zambelli (PSL), do mesmo partido de Bolsonaro, afirmou que um assessor foi agredido por manifestantes quando passava pelo ato.

A Polícia Militar registrou a confusão na Paulista como “desentendimento” e encaminhou envolvidos à delegacia.

No Rio, manifestantes se reuniram à tarde na Cinelândia. A estimativa de público do ato, que reuniu políticos de partidos de esquerda, foi de 300 pessoas. Para os organizadores, duas mil. Pela manhã, um avião do Movimento 342 Artes cruzou a orla coma faixa “Ditadura nunca mais!”.

Já em Brasília, um grupo de cerca de 450 pessoas, segundo a PM, fez passeata no Eixão Norte com cartazes em memória das pessoas torturadas e mortas e com críticas a Bolsonaro. Enquanto em Belo Horizonte, manifestantes criaram um painel com fotos de desaparecidos políticos na P raçada Liberdade. Também na capital mineira, um grupo de 50 pessoas se reuniu para exaltar o que chamam de “movimento cívico-militar de 1964”. O ato foi convocado nas redes sociais pelo deputado estadual Coronel Sandro (PSL). 

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Governo quer cortar indenizações de 3 mil ex-militares

Patrik Camporez

01/04/2019

 

 

Ex-cabos demitidos da Aeronáutica durante ditadura alegam perseguição política; ministra Damares fala em excesso de contingente

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, quer cancelar o pagamento de indenizações concedidas pela Comissão de Anistia aquase três mil ex-militares da Aeronáutica, que foram demitidos durante a Ditadura e acabaram se tornando anistiados políticos. O caso já está na Controladoria-Geral da União.

Para o governo Bolsonaro, esses ex-cabos anistiados não foram perseguidos pelo regime, mas exonerados por excesso de contingente, o que torna irregular o pagamento das indenizações. A estimativa do governo é de que pelo menos R$ 3 bilhões foram gastos de maneira irregular com essas anistias.

Ao tentar derrubar o benefício concedido aos ex-militares, o governo quer impedir que outros R$ 13 bilhões saiam dos cofres da Aeronáutica para bancar novas indenizações. O caso já foi judicializado. Em 1964, com o golpe militar, a Aeronáutica contabilizava 6.339 cabos em seu efetivo, o que caracterizava uma desproporção em relação aos número de soldados.

Para equilibrar seu contingente nas diferentes hierarquias, a Aeronáutica lançou a Portaria 1.104/1964, que limitou o reengajamento dos cabos a oito anos. Antes, não havia limite de tempo. Houve, então, a saída em massa de cabos que atingiam o tempo limite na Aeronáutica. A Comissão de Anistia considerou esses cabos como sendo vítimas de uma medida de exceção e decidiu pelo pagamento de indenização a todos eles.

Ato administrativo

Do total de militares que conseguiram decreto de anistia, 90% são ex-cabos da Aeronáutica que se enquadram como perseguidos por causa do decreto de 1964.

A Comissão de Anistia entendeu que aportaria, baixada num regime de exceção, prejudicou acarre irade milhares de militares (que tiveram que deixar as forças armadas após oi toanos) eque por isso eles precisam ser indenizados.

Para Bolsonaro e a ministra D amares Alves, aportaria da Aeronáutica de 1964 “não foi perseguição política, e sim um ato administrativo que visava racionalizar a carreira militar”. O governo considera, inclusive, que em boa parte dos casos houve má-fé por parte dos exmilitares que submeteram seus casos à comissão.

Segundo os cálculos do governo, o Ministério da Defesa paga, atualmente, R$ 29 milhões por mês a ex-cabos anistiados. Caso a pasta tenha de quitar todo o valor retroativo aos ex-cabos, o orçamento da pasta ficará, ainda de acordo com o governo, comprometido e poderá faltar recursos até mesmo para o controle de tráfego aéreo.

Subprocurador da República, Brasilino Pereira dos Santos acompanha há mais de 18 anos o caso das anistias concedidas a ex-cabos. Em 2004, ele comandou a instauração de um inquérito civil público para investigara concessão de anistias a três mil militares. O inquérito foi ajuizado em 2014, na Justiça Federal em Brasília.

— São bilhões de reais que estão in dopara o ralo. Disseram que aportaria de 1964 teria como finalidade perseguir os cabos. Aí, apareceram milhares de cabos se dizendo perseguidos políticos, quando, na verdade, essa portaria só fez o seguinte: ela limitou o tempo de permanência co moca bona Aeronáutica em oito anos. São três mil falsários—diz, Brasilino, que atualmente está lotado na Primeira Turma do STJ.

Em 2011, o então ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, determinou a instauração de processos administrativos de anulação das portarias concessivas de anistia a mais de 2.500 ex-cabos da Aeronáutica. A justificativa era de que os benefícios haviam sido deferidos unicamente com fundamento na Portaria de 1964.

Na época, uma comissão de revisão composta por advogados da União e pelo Ministério da Justiça assinou a anulação de 428 anistias. O entendimento foi de que os ex-cabos deixaram a Aeronáutica por vontade própria. Foram encontrados casos de ex-cabos que eram crianças quando a norma foi criada. Ou seja, não poderiam alegar que foram perseguidos politicamente.

Anos antes, em 2004, o então ministro da Justiça do governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, anulou 270 anistias de ex-cabos da FAB. Apesar de esforços dos governos, o Superior Tribunal de Justiça considerou que muitas anistias não deveriam ser anuladas, pois já estavam sendo pagas há mais de cinco anos. Um mandado de segurança questiona o STJ no Supremo Tribunal Federal.