O globo, n. 31283, 01/04/2019. Rio, p. 8

 

Entrevista - Giniton Lages: ‘Vivemos em um país que está sangrando’

Giniton Lages

Vera Araújo

Chico Otavio

01/04/2019

 

 

Policial que presidiu a primeira fase das investigações do caso Marielle Franco e Anderson Gomes diz que seu afastamento da Delegacia de Homicídios da Capital foi ‘algo natural’

Apesar da prisão de dois suspeitos da morte de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o delegado Giniton Lages deixou o caso, na semana passada, levando algumas frustrações. Na primeira entrevista em que faz um balanço da investigação mais importante de sua carreira, o ex-titular da Delegacia de Homicídios da Capital enumerou as principais dificuldades para a elucidação do caso, entre os quais a falta de pistas relevantes deixadas pelos assassinos e a relutância das empresas multinacionais de serviços on-line em fornecer dados, mesmo quando obrigadas judicialmente. Ele criticou a legislação penal por excesso de tolerância e defendeu a criação de bancos de dados nacionais de impressões digitais e perfis genéticos, além do pacote anticrime proposto por Sergio Moro.

Como o senhor vê a luta contra os homicídios no país?

Vivemos em um país que está sangrando. Por ano, são 72 mil vidas perdidas ( segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ocorreram 63.880 mortes violentas intencionais em 2017 ). Urgentemente, temos que atacar isso com um conjunto de medidas contra a impunidade. Como não conseguimos montar um banco nacional de impressões digitais? Como, cientes de que os homicídios são predominantemente provocados por arma de fogo, ainda não temos um banco nacional de perfis balísticos? Mesmo arrecadando vestígios de DNA nas cenas de crimes, como não ter um banco nacional de perfis genéticos? De que forma podemos reduzir a sensação de impunidade se a pena de homicídio é tão baixa, a ponto de, com o benefício da rápida progressão de regime, logo o homicida estar pronto a matar de novo? Estou entusiasmado com o pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que toca em pontos importantes no combate ao homicídio.

Como foi assumir a DH três dias depois das mortes de Marielle e Anderson?

A equipe assumiu confiante de que daria uma resposta rápida. Porém, contrariando as expectativas, o decorrer dos primeiros trabalhos nos deu a certeza de que não seria fácil. O caso tinha características incomuns, observadas especialmente na disciplina do monitoramento das vítimas e na peculiar escolha do modo de matar, vista no armamento, na munição irrastreável e nos disparos precisos, sem desembarque (do carro) e com dois veículos em movimento. Em razão da falta de vestígios relevantes, constatamos que a investigação, para ter sucesso, teria de ser inovadora e contar com ferramentas tecnológicas não usadas em outro caso.

Qual foi o pior momento?

Na primeira fase, vivenciamos muitas coisas, positivas e negativas. A mais negativa foi verificar que o necessário uso de técnicas inovadoras dependeria de uma interlocução difícil com as operadoras de telefonia e das empresas de internet atuantes no Brasil. Se fosse um caso comum, é triste reconhecer, não teríamos obtido atendimento por parte dessas multinacionais.

As empresas de telefonia não ajudaram às investigações?

Em investigações anteriores, era comum o uso de interceptação telefônica como ferramenta de rastreio que hoje não se presta mais ao propósito. As empresas de telefonia não se modernizaram e, para conter custos, continuam a cumprir as ordens judiciais da mesma forma que faziam há dez anos, ignorando que hoje a comunicação se dá por trânsito de dados de internet no qual os comunicantes se utilizam de aplicativos, de modo que só se consegue fazer rastreio de alguém por meio da coleta e análise de dados de internet. Não adianta enviar dados de voz. Precisamos de informações de tráfego na internet, por meio das tecnologias 3G e 4G. Para não repassar a quantidade de dados de internet solicitadas, passaram a restringir a entrega dos dados ao período anterior a seis meses, a contar do deferimento da decisão judicial, alegando a lei que disciplina o Marco Civil da Internet. Esta resistência descabida causou e ainda causará muitos prejuízos a esta e a várias investigações país afora.

Como foi a relação com as empresas de internet?

Temos que rever a forma como o país relaciona soberania e interesses das multinacionais. No caso Marielle e Anderson, vemos com muita clareza o desrespeito ao cumprimento de nossas leis. Com poder econômico, negam-se a cumprir decisões judiciais e arrastam até as últimas instâncias a resistência infundada. No decorrer da investigação, chegamos a construir um entendimento com o Google. Agora, já ao término da primeira fase, o Google voltou a negar os nossos pedidos. Provavelmente na segunda fase, a nova equipe da DH e os promotores precisarão ir aos tribunais superiores para obter atendimento às ordens judiciais já constantes dos autos. Duvido que, na apuração da morte de algum cidadão americano, as empresas de internet, sob algum pretexto, protelem ou se neguem a cumprir uma decisão judicial.

Como viu as coincidências em torno do nome do presidente Bolsonaro no caso?

Assim como temos de tomar muito cuidado com informações de contrainteligência, geradas para desestabilizar as instituições, temos que ter cautela com a criação de links e conexões com dados irrelevantes para a elucidação completa do caso. Até aqui, nada foi evidenciado que aproxime os autores da execução com qualquer outro residente no condomínio Vivendas da Barra, onde, coincidentemente, moram o presidente e sua família. Qualquer coisa que se diga, diferente disto, é elucubrar, tergiversar e, sobretudo, agir de forma irresponsável.

Por que o senhor deixou a DH?

A mudança no comando da Delegacia de Homicídios já era algo natural e objeto de deliberação prévia pelo atual comando da Secretaria de Estado de Polícia Civil. Em decorrência do momento da investigação do caso, a cúpula resolveu protelar um pouco mais a nossa substituição em razão de eventuais riscos de prejuízos que o encerramento da primeira fase das investigações pudesse sofrer. Mudanças no comando de uma unidade policial são comuns e salutares, desde que realizadas de forma responsável e técnica, o que foi o caso. Fizemos a transição da melhor forma possível, e deixamos a presidência desta investigação certos de que, neste período, conseguimos firmar um trabalho de bases sólidas para que a nova equipe, em parceria com o Ministério Público, em breve, possa apresentar a resposta tão aguardada.