Valor econômico, v.19, n.4560, 03/08/2018. Opinião, p. A10

 

Colapso e explosão tarifária

Edvaldo Santana 

03/08/2018

 

 

O setor elétrico brasileiro é singular. Possui uma capacidade instalada de geração de 160 GW, dos quais 101 GW, ou cerca de 64%, são de hidrelétricas. As termelétricas convencionais respondem por pouco menos de 44 GW (28%), com uma característica bem interessante: 63% disso veem de fontes razoavelmente limpas, como biomassa (15 GW) e gás natural (12,5 GW). Uma boa notícia. Uma notícia melhor ainda é que a potência instalada das eólicas, em março de 2018, já teria se igualado à de gás natural. Ao mesmo tempo, a energia solar já teria ultrapassado 1,5 GW. Poucos países possuem números parecidos.

Como fica a produtividade de tudo isso? Desastrosa. Em julho de 2018 o consumo de energia foi de menos de 64 GW médios, denotando que apenas 40% da capacidade instalada teria sido utilizada. Mesmo se for adotada como parâmetro a demanda máxima, cujo recorde é de 82 GW em alguns minutos de fevereiro deste ano, o índice de utilização da potência total é de apenas 50%. Não sei se algum país tem tamanha improdutividade. Acho que não.

Quando se toma um universo menor, no caso, as hidrelétricas, com seus 101 GW, os resultados beiram à tragédia. Em junho de 2018 elas conseguiram produzir 38 GW médios, o que representa uma produtividade de 38%, quando o normal seria algo entre 63% e 75%. Este cenário explica o elevado risco hidrológico e seus respectivos custos, apresentados com precisão em matéria do Valor de 1º de agosto.

Como a carga, mesmo em período de economia sem crescimento, é de 64 GW, a energia armazenada, quando os reservatórios estão totalmente cheios, é suficiente para apenas 4,5 meses. Em junho de 2018, em pleno período seco, os reservatórios estavam com parcos 30% de sua capacidade. Teríamos, então, energia hidrelétrica armazenada para pouco mais de 1 mês.

O custo disso, claro, é explosivo - R$ 39 bilhões em 2018, segundo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Como as distribuidoras receberam muito menos que isso em suas tarifas, há sim um potencial nada desprezível para a generalização da inadimplência, como reverberou o presidente da associação das distribuidoras em matéria aqui no Valor. A alternativa a este quadro é, novamente, uma revisão extraordinária das tarifas, aumentando-a em, no mínimo, 11%. Seria um dano irreparável para quem já tem uma das maiores tarifas do mundo.

Mesmo com este cenário quase catastrófico, entendeu-se como prudente autorizar a paralisação da plataforma de Mexilhão, o que aumentará absurdamente os custos da segurança energética, dado o acionamento de fontes de geração muito mais caras do que o gás natural, apesar da cuidadosa e dispendiosa logística montada pela Petrobras. A justificativa é de que no inverno usa-se menos o ar condicionado, o que reduz a carga. Esqueceram que a escassez de água no período é proporcionalmente muito maior, o que caracteriza o período como "seco" e com necessidade de mais termelétricas. Em uma metáfora que aprendi com um velho professor, parece que, no setor elétrico, escassez e abundância se confundem, ou há uma profusão de imprudências.

Em meio a tantos desencontros, tivemos a notícia de que o governo pretende fazer um leilão para contratar termelétricas a gás natural, até onde se sabe para resolver graves problemas para o atendimento da carga no Nordeste. Aqui vem uma curiosidade: a capacidade de geração no Nordeste é mais do que o dobro do consumo total, mas ainda assim há sérias restrições para atendimento da demanda em algumas horas do dia, sobretudo quando as eólicas param de produzir por falta de vento.

Parece razoável a solução proposta, mas é inadequada a forma de contratação, como reserva, e o problema só será empurrado para a frente. Seria mais um paliativo de elevado custo ou um analgésico que esconderia a verdadeira doença. Por que o Nordeste, mesmo com superávit de capacidade instalada, não consegue atender à demanda?

São várias as razões, mas fico com duas: é enganoso o superávit, uma vez que ele não pode ser transformado em energia na sua completude. Por exemplo: o rio São Francisco tem hoje instalados quase 10 GW, mas há um bom tempo é de conhecimento que por lá a prioridade deixou de ser gerar energia elétrica. Suas vazões veem sendo frequentemente reduzidas, o que impede as usinas de gerarem suas garantias físicas. É assim desde 2013. Há também termelétricas que não produzem por falta de gás natural, cuja explicação é a real defasagem no preço do combustível, e outras são extremamente caras, o que inviabiliza o uso como energia de base.

Assim, um leilão agora, sem resolver essas pendências, e tantas outras que não falei aqui, é mais um castigo para os consumidores, que, de um lado, continuariam a pagar por energia que não existe e, de outro, sob a forma de encargo ou não, pagariam para substituí-la. Não sei como qualificar esse tipo de "operação" - a substituição do inexistente.

Chego ao último disparate, bem recente. Poucos sabem, mas os consumidores de todo o Brasil sofrerão um reajuste de mais de 7% em suas contas de luz apenas para viabilizar a privatização de seis distribuidoras da Eletrobras. Esses 7% correspondem a cerca de R$ 10 bilhões, e ainda não estão incluídos os R$ 4,6 bilhões pagos até agora para que essas empresas sobrevivam até aqui.

Em uma troca de correspondência entre o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobras, descobre-se que esta contabiliza em 5,8 bilhões os gastos já efetuados com essas distribuidoras, aos quais devem ser adicionados R$ 5 bilhões até o final do ano. A holding pede "neutralidade" para tais gastos, na prática um eufemismo para repassá-los às tarifas. Um risco enorme para os consumidores.

Vejam que detalhe interessante: os gastos dos consumidores de todo o Brasil totalizarão R$ 26 bilhões (ou quase 20% de acréscimo das tarifas). Porém, as seis distribuidoras, somadas, significam pouco mais de 4% do mercado total de energia, o que mostra os nefastos efeitos da ingerência política nas estatais, que agora querem repassar compulsoriamente para as tarifas.

É crítica a situação e os cenários preocupam. São evidentes as perspectivas de colapso financeiro no elo entre os custos do risco hidrológico e as distribuidoras. E não devem ser desdenhadas as chances de mais aumentos nas tarifas, que chegariam ao insuportável. Esse binômio (colapso financeiro e explosão tarifária) deixa muito incerta a retomada dos investimentos por parte da indústria e cria um ciclo perverso de pessimismo generalizado, que pode apontar para um movimento caótico.