Valor econômico, v. 19, n. 4559 , 02/08/2018.Opinião, p.A12

 

É preciso rever o teto de gastos

João Prates Romero

02/08/2018

 

 

O Brasil atravessa uma grave crise fiscal. Nos últimos anos a dívida bruta vem crescendo rapidamente, e desde 2014 o governo tem obtido déficits primários. Para reequilibrar o quadro fiscal, o governo Temer aprovou o congelamento de gastos reais por 20 anos, conforme descrito na Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que ficou conhecida como EC do Teto de Gastos.

Entretanto, o Teto de Gastos apresenta diversas características que o tornam sem precedentes em relação às experiências de outros países.

Segundo estudo do FMI de 2015, dos 12 países que adotaram regras que limitam o crescimento do gasto real, nenhum adotou uma regra que congela completamente os gastos, como feito no Brasil. Todos os outros países permitem algum crescimento do gasto real. Sobretudo, o prazo de 20 anos de congelamento total de gastos reais não tem paralelos.

Além disso, o estudo do FMI ressalta que regras de gastos podem afetar negativamente investimentos e gastos sensíveis como saúde, educação e ciência e tecnologia, o que prejudicaria o crescimento. Por conta disso, diversos países optam por retirar tais gastos de suas regras.

O teto de gastos do Brasil foi na contramão dos demais países e optou por realizar o ajuste fiscal retirando recursos da saúde e da educação. Antes do teto a Constituição determinava que percentuais fixos das receitas deveriam ser investidas em saúde e educação. Com o crescimento do PIB, crescem as receitas, e com elas cresciam também os gastos com saúde e educação. A EC 95 mudou a Constituição exatamente nesse ponto, estabelecendo que os gastos reais (descontando a inflação) com saúde e educação permanecerão congelados por 20 anos. Como resultado desse congelamento, até 2026 deixarão de ser investidos em torno de R$ 139 bilhões na educação, e R$ 358 bilhões na saúde.

Mais do que isso, a rigidez extrema do teto inviabiliza completamente a realização de qualquer gasto discricionário por parte do governo a partir de 2020. A estrutura do gasto do governo brasileiro é extremamente engessada, com elevado percentual de recursos consumido pelas despesas obrigatórias. Parte do gasto com saúde e educação encontra-se dentro das despesas discricionárias (1,5 e 0,7% do PIB em 2015, respectivamente), enquanto outra parte se encontra nas despesas com pessoal e encargos sociais (0,2 e 0,7% do PIB).

Usando esses números para retirar tais gastos de dentro de cada uma dessas contas, e projetando esses e outros gastos para o futuro obedecendo às regras do teto e utilizando estimativas de crescimento e inflação do boletim Focus do Banco Central, observa-se que já em 2020 todas as despesas discricionárias (excluindo saúde e educação) deverão ser zeradas para que o teto seja cumprido. Isso ocorre pois mesmo congelando todos os gastos reais (saúde, educação, pessoal e outros), o crescimento do número de beneficiários da previdência implica a necessidade de cortes nos gastos discricionários.

Em outras palavras, o teto de gastos na verdade impossibilita que o governo realize qualquer investimento público. O teto inviabiliza qualquer gasto discricionário com ciência e tecnologia, com cultura, com esporte, com habitação, com segurança, com defesa, com proteção ao meio ambiente, e assim por diante. Em suma, o teto inviabiliza qualquer atividade do governo fora dos gastos já obrigatórios.

(...)

É inédita uma regra que projeta, em curtíssimo prazo, uma situação como essa. Mais do que isso, o drástico corte de investimentos públicos em infraestrutura e em ciência e tecnologia que já vem acontecendo tem forte impacto negativo sobre o crescimento de longo prazo. As exportações brasileiras de manufaturados, por exemplo, têm perdido espaço no mercado internacional. Sem fomento à inovação é muito provável que esse quadro se agrave e sua reversão seja ainda mais difícil no futuro.

É importante destacar que a realização da reforma da previdência não altera em nada esse panorama. Mesmo supondo que o gasto com previdência cresça somente com a inflação mais o número de novos beneficiários, ainda assim as despesas discricionárias tem de ser zeradas em 2020 para que o teto seja cumprido. Depois disso se tornarão imperativos cortes nas outras despesas obrigatórias, que tem como suas principais contas os benefícios assistenciais (Loas/RMV) e o abono e seguro desemprego. Ou seja, a partir de 2020 deverão começar a ser reduzidos gastos sociais, desmontando programas assistenciais que são fundamentais para a redução da desigualdade e para o estímulo do mercado interno.

Cabe ressaltar ainda que em 2026 o teto deverá gerar um superávit primário em torno de R$ 410 bilhões de reais, o que corresponderia a algo em torno de 5,5% do PIB, e que continuará crescendo. Outro aspecto inédito do teto é estabelecer uma regra que prevê crescimento indefinido do superávit primário em detrimento de investimentos públicos, que são importantes para o crescimento, e de gastos sociais, que são fundamentais para a redução do abismal hiato de oportunidades verificado no Brasil.

É fundamental retomar os debates a respeito dessa regra, buscando aprimorar os mecanismos para a geração do imprescindível ajuste das contas públicas. Sobretudo, é crucial realizar um debate mais profundo a respeito da composição dos gastos do governo e da implementação de tetos específicos, tomando como referências as demandas da população brasileira e os efeitos dos diferentes tipos de gasto público sobre o crescimento.