Valor econômico, v.19, n.4565, 10/08/2018. Brasil, p. A6

 

Brasil tem 606 casos de violência doméstica por dia

Hugo Passarelli

10/08/2018

 

 

O Brasil registrou 221,2 mil casos de violência doméstica em 2017, ou 606 por dia, segundo o 12° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ontem. Quase 90% das vítimas (193,4 mil) são mulheres. É a primeira vez que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), responsável pelo levantamento, compila as situações enquadradas na Lei Maria da Penha, que completou 12 anos nesta semana.

O número real deve ser ainda maior porque é comum a subnotificação, seja por falta de preparo nas delegacias, seja por receio das vítimas em reportar a situação. Além disso, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Roraima e Tocantins ainda não produzem estatísticas sobre o tema.

"O homicídio é a grande vergonha nacional, mas não podemos deixar de lado a violência de gênero. Com esses índices, não dá para pensar em ser um país desenvolvido", afirma Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. Para ela, é preciso deixar de caracterizar a situação apenas como problema do âmbito doméstico para, de fato, enfrentá-la. Apesar do cenário alarmante, a violência doméstica mostrou discreta melhora entre 2016 e 2017, com queda de 1,6%. Segundo Samira, porém, o movimento pode refletir a inconsistência de dados de alguns Estados.

O avanço da violência contra a mulher também ocorre em outras esferas. Os estupros bateram recorde e cresceram 8,4% de 2016 para 2017, para 60 mil. O levantamento mostrou ainda que 4.539 mulheres foram vítimas de homicídio em 2017, um crescimento de 6,1% em relação a 2016. Já os feminicídios, quando a motivação é o gênero, passaram de 929 para 1.133.

"O feminicídio claramente é subestimado. A lei que tipificou o crime é de 2015, e leva um tempo para a implementação. A boa notícia é que, pelo menos, as polícias começaram a registrar", disse Samira. Segundo ela, uma análise preliminar dos microdados permite estimar que cerca de 50% dos homicídios de mulheres poderiam ser identificados como feminicídios a partir da análise de evidências, como o local em que foi ocorreu o crime.

O anuário desenhou uma escalada da violência brasileira em 2017 para níveis recordes. Foram 63,9 mil assassinatos, ou mortes violentas intencionais pela nomenclatura técnica. Por essa ótica, são 175 mortos por dia ou 7 por hora no país.

Isso também corresponde a uma taxa de 30,8 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Os Estados mais violentos por esse índice são Rio Grande do Norte (68), Acre (63,9) e Ceará (59,1). Na outra ponta, estão São Paulo (10,7), Santa Catarina (16,5) e Distrito Federal (18,2).

O levantamento, que é complementar ao Atlas da Violência (mas basea-se em informações obtidas com as polícias, e não com dados de saúde, como o primeiro estudo) evidencia ainda a violência policial.

Foram registradas 5.144 mortes por intervenções policiais civis e militares, alta de 20% ante 2016, o que representa 14 mortes por dia. Em 2012, esse número era de 6 por dia. Ao mesmo tempo, caiu em 4,9% a quantidade de policiais mortos, para 367. "Percebemos que os policiais são só o ponto de início desse fluxo violento", disse Renato Sergio Lima, diretor-presidente do FBSP.

"Não podemos ignorar que esse resultado acontece porque investimos num modelo de policiamento ostensivo e sem prioridade da investigação. A impunidade é elevada", afirmou Samira.

Para Lima, há forte correlação da piora da violência com o número de armas apreendidas, que somaram 119,5 mil no ano passado, leve alta de 0,2% em relação a 2016. Destas, porém, 95% não foram cadastradas no sistema da Polícia Federal. "Portanto, dificilmente conseguimos rastrear o que aconteceu com essa arma".

Os especialistas destacam que a restrição orçamentária também é um desafio para mudar esse quadro. Os gastos com segurança no ano passado somaram R$ 84,7 bilhões, praticamente estáveis em relação a 2016 (aumento de 0,85%). "Com o teto de gasto e a crise fiscal, fica praticamente impossível viabilizar o que prega o Sistema Único de Segurança Pública [Susp], sancionado neste ano", diz Samira.

Para Lima, a mudança desse cenário passa por maior articulação. "Precisamos de governança para coordenar esses esforços".