Correio braziliense, n. 20401, 30/03/2019. Opinião, p. 11

 

Compromisso com a verdade

Renan Calheiros

30/03/2019

 

 

É infamante celebrar um movimento que matou, torturou, exilou, sequestrou pessoas, fechou o Congresso, censurou a imprensa e mergulhou o país no caos e no obscurantismo. Trata-se de um insulto aos brasileiros e às famílias de mortos e desaparecidos. É também mais uma comichão autoritária que prefere desprezar a história e seus legados.

As reações ao desatino explodiram nos principais jornais do mundo e desencadearam duros protestos das instituições. O Ministério Público fez uma severa condenação e a Defensoria Pública da União provocou a Justiça, a fim de proibir a insinuada comemoração. Festejar o banho de sangue, a opressão e a destruição de vidas e famílias, beira a insânia.
O Congresso, imprensa e Judiciário foram as vítimas preferenciais das arbitrariedades. Em 17 Atos Institucionais, os direitos políticos foram suspensos, houve intervenções no Supremo Tribunal Federal (STF) e arbitraram-se as eleições indiretas nos estados. A síntese veio no pacote do AI-5. Ele fechou o Congresso, cassou mandatos, suspendeu o habeas corpus e baixou a censura. Devemos aprender, nunca nos orgulharmos de um passado tão funesto. O parlamento, em sua ampla maioria, não concorda com a celebração e, por isso, vem fazendo revisões históricas desse período.
Em 21 de novembro de 2013, o Congresso Nacional aprovou proposta memorável que reconciliou o Brasil com a verdade e apagou uma inverdade da história do país. O projeto anulou a sessão de 2 de abril de 1964, na qual foi declarado vago o cargo de presidente da República. O presidente João Goulart, como se sabe, foi deposto quando ainda se encontrava em solo brasileiro tentando resistir ao golpe com o apoio do III Exército.
“O sr. presidente da República deixou a sede do governo. Deixou a nação acéfala numa hora gravíssima da vida brasileira em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente do seu governo. O sr. presidente da República abandonou o governo”, anunciou, debaixo de protestos e muito tumulto, a voz estrepitosa do então presidente do Congresso, Auro Moura Andrade.
Mais do que justiça, a anulação daquela sessão é a exumação da própria história brasileira. Recusamos uma falsidade que perdurou por 49 anos e nos reencontramos oficialmente com a verdade. Afinal, a mentira é tão nociva quanto o silêncio sobre ela. Anular a sessão, sem apagá-la da memória é reconhecer que João Goulart foi deposto e, mais grave, com a participação direta do Congresso Nacional. É afirmar que ele foi vítima de uma ilegalidade. É um pedido público de desculpas ao país, aos seus cidadãos, ao presidente João Goulart e à família dele.
Não se pretendeu retroagir no tempo ou manufaturar uma nova história, reescrevendo-a ao gosto do momento. Versão não se confunde com história. A versão, calcada na mentira, é  efêmera e inconsistente, mas a verdade é eterna e sólida, como bem definiu Francis Bacon: “A verdade é filha do tempo, não da autoridade.”
A história desconhece ponto final, especialmente se ela foi forjada na falsidade e, nesse caso, ela precisa mesmo ser reescrita. Se não podemos revogar páginas da história, devemos invalidar a máxima de Joseph Goebbels de que “de tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade”. Nãções não são erguidas em cima de falsidades. Ao contrário, o alicerce mais robusto da democracia é a verdade.
Não podemos revogar muitas páginas da nossa história, mas sempre que preciso devemos reformá-las a fim de iluminar as futuras gerações. Vamos repor a verdade sempre que necessário, como fiz quando presidi a sessão que anulou a farsa de 1964. Vamos resistir sempre aos fundamentalistas que não convivem com as diferenças. A lógica do senso único é inservível à democracia. (...)