Valor econômico, v.19, n.4571, 20/08/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

Herança digital e direito sucessório

Júlia Sanzi

20/08/2018

 

 

A internet transformou nossos dispositivos móveis em verdadeiros bancos de dados pessoais e digitalizou nossas relações humanas, permitindo acesso por meio de um clique. Nesse sentido, tem-se criado um acervo digital gigantesco, que inclui imagens, vídeos, fotografias, documentos, músicas e áudios, tratando-se de uma infinidade de conteúdo. Além do valor patrimonial, há nesses arquivos um verdadeiro caráter sentimental que, na maioria das vezes, se sobrepõe perante o primeiro. Sendo assim, indaga-se: como fica o acesso após a morte? Existe direito sucessório? Trata-se de uma discussão teoricamente nova. Porém, muito importante.

O direito sucessório é um instituto bastante antigo, de grande relevância social. A garantia de sucessão ou transmissibilidade dos bens fortalece o instituto da propriedade privada e o interesse do homem em produzir, gerar renda, valores e bens, sabendo que aquilo se transmitirá aos seus herdeiros. Ainda, há de se lembrar que a herança é considerada um direito fundamental, previsto na Constituição Federal (artigo 5º, XXX).

O desafio trazido por essa digitalização das relações sociais é garantir a aplicabilidade das normas do direito sucessório ao patrimônio digital, desde que os direitos individuais (intimidade e privacidade, por exemplo) não sejam afetados, ou seja, o direito deve acompanhar essa evolução para que não haja carência de proteção.

Os bens digitais podem ser classificados de duas maneiras: suscetíveis de valoração econômica (arquivos de música, e-books, jogos e filmes) e os insuscetíveis de valoração econômica (textos, fotos e e-mails). A maioria desses bens tem seu acesso vinculado a um login e senha - seja do próprio aparelho, seja da conta do usurário. Sendo assim, a disponibilização do patrimônio do falecido aos seus herdeiros tem se tornado cada vez mais difícil.

Assim, as empresas de tecnologia precisam ser direcionadas para adotarem uma posição quanto à sucessão desses bens. Porém, ainda inexiste qualquer legislação brasileira acerca do assunto. De tal modo, cada empresa segue seus princípios e diretrizes internas.

Seguindo essa autorregulação, algumas empresas têm se posicionado quanto à negativa de desbloqueio do acesso da conta ou aparelho do falecido, não permitindo a transferência de dados e senhas aos herdeiros, ou até mesmo serviços e arquivos adquiridos, sob alegação de proteção à intimidade e privacidade do usuário, adotando uma política de segurança e privacidade rígida e bem estruturada.

Essas empresas enfatizam que não armazenam nenhum tipo de dado sob uma simples questão de segurança e privacidade, mesmo que essa decisão acabe por inviabilizar a utilização do aparelho ou o serviço. Diante dessa recusa, não resta alternativa aos herdeiros senão buscar a via judicial para tanto.

No entanto, outras empresas seguem uma tendência mais liberal, permitindo a transferência do uso de alguns produtos, adotando o entendimento de que se trata de uma licença de uso e não uma compra.

Em interessante sentença no Estado do Minas Gerais, o juiz de direito local julgou improcedente o direito de acesso aos dados pessoais da filha falecida da autora. O magistrado entendeu pela inviolabilidade de dados pessoais do titular da conta virtual, com base no artigo 5º, XII, da Constituição Federal, que trata sobre o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

Ainda alegou o magistrado que a quebra de sigilo dos dados da falecida permitiria não apenas o acesso aos seus dados, como também de terceiros com os quais a usuária mantinha contato, sendo que eventual quebra de sigilo certamente acarretaria a invasão da privacidade de outrem, conforme passagem da decisão: "Dada essa digressão, tenho que o pedido da autora não é legítimo, pois a intimidade de outrem, inclusive da falecida Helena, não pode ser invadida para satisfação pessoal. A falecida não está mais entre nós para manifestar sua opinião, motivo pela qual a sua intimidade deve ser preservada". (precedente nº 0023375-92.2017.8.13.0520, juiz Manoel Jorge de Matos Junior, Vara Única da Comarca de Pompeu/MG).

Quando do falecimento de uma pessoa, muitas vezes, seus familiares não sabem o que fazer com os arquivos digitais, como perfis em redes sociais e contas de e-mail. Algumas empresas possibilitam a exclusão da conta ou sua transformação em um "memorial", não possibilitando a permissão de acesso ao conteúdo armazenado. Outras permitem também um "testamento digital", em que o próprio usuário permite o gerenciamento da conta por um terceiro previamente autorizado.

Por todo o exposto, há de se considerar que as questões relativas ao legado digital merecem regulamentação específica, considerando a colisão entre o direito à privacidade do falecido e o direito de suceder dos herdeiros, cabendo também ao Poder Judiciário brasileiro estabelecer as regras e diretrizes acerca do tema, aplicando a legislação já existente a estas novas relações entre indivíduos, empresas prestadoras de serviços e a herança material e imaterial em meio digital.