Valor econômico, v.19, n.4573, 22/08/2018. Opinião, p. A13

 

Leilão de carvão é um retrocesso

Marcelo Laterman Lima 

22/08/2018

 

 

São os leilões de energia nova que definem o futuro da matriz elétrica brasileira e, se depender das regras atuais, ela pode ficar ainda mais suja, cara e ineficiente. Enquanto o mundo mobiliza esforços pelo fim da queima de carvão mineral para eletricidade, nosso governo insiste em permitir sua expansão. No dia 31 ocorrerá o leilão A-6 para a contratação de projetos de geração de energia elétrica, com início de operação previsto para 2024 e, na contramão do mundo, duas novas usinas termelétricas a carvão poderão ser contratadas.

No âmbito global, a discussão sobre descarbonização tomou fôlego, em 2015, na Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CoP 21), em Paris. De acordo com a Climate Analytics, em vias de restringir o aquecimento global aos parâmetros do acordo, é necessário um descomissionamento (phase-out) de todas as térmicas a carvão do mundo até 2050. Este combustível fóssil é o mais intensivo em carbono que existe.

Já em 2017, 19 países e diversos Estados anunciaram uma aliança pelo encerramento de seus programas a carvão até 2030, entre eles Reino Unido, França, Canadá, Portugal e México. Em 2018, foi a vez do Chile anunciar um plano nesse sentido, no qual o mineral responde por 35% da geração elétrica; na Alemanha, uma comissão foi formada em julho para definir um prazo para o fim do carvão, que representa hoje 40% da matriz elétrica do país.

O leilão A-6 apenas escancara o absurdo de um país com potencial de protagonismo em questões ambientais apostar em uma fonte tão ultrapassada, enquanto países que dependem do carvão discutem o seu fim. A contradição aumenta se analisamos as vocações de geração de energia do Brasil. Segundo relatório da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), temos condições naturais extremamente favoráveis para fontes renováveis modernas - nosso potencial eólico e solar figuram entre os maiores do mundo; por outro lado, nosso carvão mineral é dos menos eficientes, com alto teor de enxofre e relativamente baixo poder calorífico. Também chamado de hulha, este tipo de carvão foi o motor da revolução industrial do século XVIII.

A importância da diversificação da matriz é lugar comum entre especialistas. Fontes renováveis, principalmente eólica e solar, têm como característica a complementaridade entre si e apresentam aumento de rendimento em períodos secos, como nas atuais estiagens, que representam a maior ameaça à segurança energética no país, ainda muito dependente de fontes hidráulicas.

Já passou da hora de o governo decidir se seguiremos absorvendo investimentos externos para projetos poluentes de países que já investem na transição energética, como a China, ou se tomaremos as rédeas de um futuro limpo e renovável, de menos impactos ambientais

A intermitência das renováveis ainda é colocada como empecilho para sua expansão, argumento enfraquecido se consideradas as possibilidades de parques híbridos entre solar e eólica, redes de transmissão inteligentes e o rápido avanço no mercado de baterias de íon-lítio, para citar alguns exemplos. Por outro lado, a propalada resposta rápida de algumas "fontes firmes", em casos de urgência é superestimada. As usinas nucleares levam até um dia entre sua partida e a entrega de energia ao sistema e as térmicas a carvão são pouco flexíveis: seu tempo de partida chega a seis horas, muito acima das demais, de acordo com dados da International Energy Agency (IEA), em 2012. Em outras palavras, usinas a carvão são opções pouco eficazes em termos de reserva de carga.

Se a incoerência de insistir em termelétricas a carvão ainda não ficou clara para o Ministério de Minas e Energia (MME), para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) esse já é o entendimento desde 2016, quando deixou de financiar empreendimentos desta fonte. A instituição financeira mostra estar em linha com as diretrizes do Banco Mundial, que restringiu estes investimentos em 2013 em resposta aos esforços globais de mitigação às mudanças climáticas. Politicamente, no entanto, seguimos olhando para trás.

Já passou da hora de o governo decidir se seguiremos absorvendo investimentos estrangeiros para projetos poluentes de países que, internamente, já investem na transição energética, como a China, ou se tomaremos as rédeas de um futuro limpo e renovável, de mais e melhores empregos no setor elétrico, menos impactos ambientais e tarifas vantajosas aos consumidores. Temos as melhores condições para tal, falta apenas vontade política e o estabelecimento de metas ambiciosas como, por exemplo, uma data para o fim do carvão, que leve em conta um plano de transição justa dos empregos do setor para o crescente mercado de renováveis.

A próxima Conferência do Clima (CoP 24), em Katowice, na Polônia, acontece no fim deste ano. Haverá discussões importantes sobre o uso do carvão, já que a cidade é uma das maiores produtoras mundiais do mineral, e essa pode ser uma ótima oportunidade para que o Brasil se posicione sobre o tema.

Enquanto países que hoje dependem do carvão anunciam seu fim até 2030, a contratação de uma usina no leilão A-6 assegurará sua operação até 2049. Segundo o Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA), a entrada em operação de um dos empreendimentos cadastrados no leilão, a UTE Ouro Negro, localizada na região de Candiota/RS, aumentará em 7% as emissões de CO2 da matriz elétrica no país e para 70% a demanda de água da região - já com escassez hídrica - para uso nas térmicas. Daí a urgência em falarmos sobre o assunto: para que o investidor perceba o risco financeiro; o governo, o risco político; e a população, os diversos riscos que o carvão representa para o futuro. Precisamos falar mais sobre tema tão caro à saúde desta e das próximas gerações, ao meio ambiente e ao bolso do brasileiro. Mais do que isso, precisamos de comprometimento do Estado.

No cerne do momento político do Brasil está a discussão de que país queremos, e a qualidade da matriz energética é fundamental nos rumos do desenvolvimento que teremos. Se optarmos pelo caminho da soberania, eficiência e sustentabilidade, o carvão já não é uma opção, e uma matriz limpa e justa só será possível por meio de compromissos claros nesse sentido. Que tal começarmos por barrar a expansão da fonte de energia elétrica mais poluente do mundo?