Valor econômico, v.19, n.4589, 14/09/2018. Brasil, p. A2

 

Governo derruba exigência de atestado de qualidade em licitação de remédio

Stella Fontes

14/09/2018

 

 

Em mais uma medida que suscitou duras críticas da indústria farmacêutica, o Ministério da Saúde publicou ontem uma portaria que derruba a necessidade de apresentação do certificado de boas práticas de fabricação e controle de produtos em licitações públicas de medicamentos. O certificado, que é expedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), equivale a um importante atestado de qualidade e foi instituído há 20 anos como parte de um pacote de medidas de combate a falsificações e adulteração de remédios.

"É mais fácil parar de comprar medicamento do que comprar um tratamento que vai fazer mal à população", diz o presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini. As farmacêuticas associadas à entidade obrigatoriamente têm de apresentar esse certificado de boas práticas. "O Brasil conseguiu ser reconhecido internacionalmente por sua regulação farmacêutica e essa medida traz risco sanitário."

A portaria 2.894 de 12 de setembro alterou a regra anterior, de 1998, que instituiu a obrigatoriedade de apresentação do certificado nas compras públicas de medicamentos. A redação da portaria original foi motivada pela descoberta de que a antiga farmácia de manipulação Botica Ao Veado D'Ouro estava falsificando medicamentos para tratamento de câncer de próstata, o Androcur. A acusação, que resultou recentemente na prisão de um dos antigos sócios da farmácia, mostra que o medicamento era trocado por farinha. Cerca de 1,3 milhão de comprimidos falsos teriam sido produzidos.

A obtenção do certificado gera custos aos laboratórios, da ordem de R$ 500 mil a R$ 1 milhão, para garantir sua renovação. Contudo, a indústria não condena a cobrança. A decisão do Ministério da Saúde de revogar a obrigatoriedade do documento tomou como base um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2016, a partir de consulta feita pela área jurídica da própria pasta, sobre a exigência.

O Sindusfarma pediu uma audiência no TCU para sensibilizar o órgão sobre a importância do documento, já informou o Ministério da Saúde sobre a posição contrária da indústria e está em busca da posição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a medida. Há cerca de três meses, a agência aprovou a terceirização do controle de qualidade de medicamentos, o que também foi mal recebido pela indústria.

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Disputa põe em risco tratamento da hepatite C pelo SUS

Leila Souza Lima

Stella Fontes

14/09/2018

 

 

Disputa bilionária envolvendo a patente do medicamento Sofosbuvir no Brasil, um dos mais eficazes para tratamento da hepatite C, pode impedir a produção nacional da versão genérica do remédio e, caso se prolongue, deixar pacientes que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS) sem acesso à terapêutica. A briga entre o consórcio nacional BMK - que reúne a farmacêutica Blanver, a Microbiológica Química e Farmacêutica e a KB Consultoria em parceria com o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) - e a multinacional Gilead Sciences está na esfera administrativa e divide opiniões inclusive no meio médico. Mas, a depender dos próximos capítulos, pode chegar à Justiça.

Em entrevista ao Valor, o presidente da Blanver, Sérgio Frangioni, diz que o consórcio BMK já apresentou ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) argumentos técnicos para que a americana Gilead não obtenha a patente no Brasil. Se for concedida, a produção da versão genérica do Sofosbuvir, mais barata, será proibida até a data de expiração.

"O que acho pouco provável, porque fornecemos muitos argumentos técnicos, podemos ir à Justiça discutir esses critérios", afirma Frangioni. Internacionalmente, os países têm se posicionado de maneira distinta sobre o assunto. Na China, a multinacional não teve sucesso no pedido. Na Europa, a Gilead obteve a patente, mas o processo está sob revisão.

A Blanver firmou, há cerca de quatro anos, acordo de cooperação técnico-científica com a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) - da qual Farmanguinhos é um braço - para desenvolver um tratamento para a hepatite C. No processo, descobriu que a Microbiológica já tinha a síntese do princípio ativo do Sofosbuvir no Brasil. Após formar o consórcio BMK, apresentou o projeto à Fiocruz. Meses depois, após alguns ajustes no princípio ativo, a parceria chegou ao medicamento.

Em dezembro, o governo aprovou a parceria para o desenvolvimento produtivo (PDP) do Sofosbuvir entre o consórcio e a Farmanguinhos, com transferência de tecnologia para o laboratório público e garantia de fornecimento ao SUS, que é automática.

Entre o início das pesquisas e o registro do PDP, outros laboratórios registraram tratamentos para a hepatite C e, em julho deste ano, participaram de tomada pública de preços para fornecer os medicamentos a 50 mil pacientes. O consórcio BMK apresentou a melhor proposta, com economia aos cofres públicos estimada em US$ 200 milhões. E informa que já tem o medicamento para fornecer.

A Gilead contesta a cifra sob o argumento de que o governo brasileiro nunca chegou a gastar R$ 1 bilhão com o tratamento de hepatite e diz que o Ministério da Saúde já tem em mãos proposta mais econômica que a apresentada pelo consórcio nacional. O presidente da farmacêutica no Brasil, Christian Schneider, vai além e afirma que as discussões em curso entre governo e laboratórios, inicialmente, não tinham por finalidade a compra de medicamentos. "Sempre foi de protocolo. Fizemos vários questionamentos ao Ministério da Saúde, mas a situação não é transparente", diz.

A americana informa que tem outro tratamento a oferecer, incorporado ao SUS em março deste ano, mais eficiente e barato que o proposto pelo consórcio nacional. "Ficou abaixo de US$ 1,5 mil para 12 semanas de tratamento", argumenta o executivo, referindo-se ao valor que teria sido proposto pelo BMK. "Há pressão muito forte pelo genérico da Fiocruz."

A disputa levou outras entidades a tomar partido. A ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) organizou o abaixo-assinado na internet "Peça agora a rejeição da patente do medicamento para a hepatite C" - no início da noite de ontem, a moção já havia ultrapassado 1.700 assinaturas.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), por sua vez, divulgou nota na quarta-feira manifestando-se contrariamente à "tentativa de impedir que o governo brasileiro produza o genérico" do Sofosbuvir. "A disputa de mercado sobre o medicamento pode afetar gravemente a agenda de combate à doença no Brasil. A versão genérica tem sido mais barata para o SUS, o que resultou na tentativa de a empresa americana barrar a fabricação brasileira", diz a nota, disponível no site do órgão. "A saúde pública não pode estar submetida aos interesses mercadológicos, sendo refém dos aspectos econômicos", acrescenta.

Autora de representação encaminhada ao Ministério Público para questionar as pressões da Gilead no INPI para obter a patente do Sofosbuvir no Brasil, a ONG MSF informa que entrou em campo para defender o acesso ao tratamento. A organização cuida de mais de 12 mil pessoas com hepatite C em 13 países.

"A propriedade intelectual sempre impactou preços na saúde, e as patentes criam ilhas de proteção. Se esse monopólio é criado com patente concedida de forma imerecida, a sociedade é prejudicada, pois a falta de competitividade faz os preços se elevarem", observa Renata Reis, advogada e especialista da ONG MSF-Brasil em acesso humanitário para a América Latina.

Segundo Renata, o tratamento foi revolucionado com o uso do Sofosbuvir, permitindo a cura de 95% dos pacientes. Mas o preço praticado pela Gilead no Brasil, diz ela, "torna inviável o atendimento da enorme quantidade de pessoas que precisam de cuidados".

"Não conseguiríamos tratar um número grande sem a concorrência dos genéricos. Sem isso, os preços vão às alturas", frisa a especialista. Renata diz que, por causa dos valores e do potencial de cura envolvidos, esse talvez seja o caso mais emblemático relacionado a medicamentos e propriedade intelectual desde o desenvolvimento do coquetel contra o HIV.

Em nota enviada ao Valor, o INPI informa que o pedido de patente relacionado ao Sofosbuvir está em fase final de exame. "O INPI esclarece ainda que o exame dos pedidos de patentes é feito de acordo com a legislação e as diretrizes vigentes."

Segundo o instituto, os critérios para análise estabelecidos na Lei da Propriedade Industrial são: novidade (a tecnologia objeto do pedido deve ser nova no mundo todo); atividade inventiva (não pode ser óbvia para um técnico no assunto); e aplicação industrial (deve ser passível de fabricação).

O Ministério da Saúde, também em nota, informou que o "objetivo é avançar na oferta do tratamento para a eliminação do vírus [da hepatite C], conforme planejamento até 2030. Para isso, o processo de compra dos medicamentos para atender novos pacientes no programa está em andamento. Atualmente, encontra-se na fase de negociação de preço com a indústria". O órgão, que lançou, em 2017, o Plano Nacional para Eliminação da Hepatite C até 2030, observa que, o objetivo "é garantir competitividade no processo, com redução do custo e, consequentemente, ampliação da quantidade de tratamentos ofertados. Serão, pelo menos, mais 50 mil tratamentos até o final de 2019."

A nota informa que "todos os pacientes que tiveram o seu tratamento iniciado para a eliminação do vírus estão com o seu atendimento garantido".

E menciona também que o ministério tem incorporado novos tratamentos para a hepatite. "Neste ano, por exemplo, a portaria que atualiza o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Hepatite C Crônica incorporou os medicamentos: elbasvir+grazoprevir e ledispavir+sofosbuvir."